Felicitas Iulia Olisippo

A cidade serve para se ser feliz. O que está a falhar?

Rui Tavares, vereador do LIVRE na cidade de Lisboa

Quando os romanos chegaram a Lisboa, tiraram-lhe logo a pinta e deram-lhe um nome que, infelizmente, pouca gente recorda: Felicidade. FELICITAS IVLIA OLISIPPO, de sua graça completa, em belos caracteres latinos. Felicitas, felicidade pois, de nome próprio. Iulia da parte da mãe romana. Olisippo do pai grego Ulisses, como acreditavam os antigos, ou se calhar cartaginês, ou fenício, ou tartéssio, ou turdetano, ou se calhar desconhecido e por isso mesmo mais misterioso.

 

Foi amor à primeira vista e não podia falhar: com as suas sensuais colinas em anfiteatro, as ribeiras então ainda à superfície fluindo sinuosas para o estuário prateado, com as lezírias magníficas, não muito longe, de cujas éguas se dizia que para ficarem férteis lhes bastava receber a brisa do Tejo, com a crença (falsa, mas) generalizada entre romanos de que Ulisses fundara a cidade para refúgio dos horrores da Guerra de Troia, toda a Lisboa falava a linguagem do desejo, dos prazeres e da volúpia, fosse ela física, fosse filosófica. Ao mundo Antigo acrescentou ela o mistério: os gregos (e depois os árabes) acharam que por aqui andaria a ilha Atlântida, e a primeira vez que os nossos antepassados olisiponenses apareceram nos anais de Roma foi por terem visitado em delegação a capital do império para relatar que aqui se avistavam tritões e sereias. Da Al Usbuna moura que se seguiu à Olisippo romana veio a aventura, e Alfama ainda guarda a memória dos primos al usbunenses a que chamaram “os aventureiros” e que dali saíram para ver onde acabava o mar.

Nos seus mais de dois mil anos, — ou até três mil segundo alguns arqueólogos a quem devemos a descortesia de perguntarem a idade a esta senhora —, Lisboa continua sedutora como sempre e como nunca. Esse não é o problema.

O problema é outro. É que os políticos deixaram de saber como a amar — à cidade e à própria política. Os Antigos tinham, nisto, razão. A felicidade não é uma preocupação colateral da política, mas o seu objetivo principal. E a cidade, sede da política (é de cidade, polis, que ela ganhou o nome), serve para se ser feliz.

Quando quem governa Lisboa só a sabe amar pelos olhos dos outros, um dia acontece o inevitável: nem os lisboetas se sentem amados, nem a cidade sente o amor de volta, nem os que a procuram lhe entenderão o encanto. Capitais de pechisbeque há muitas.

O problema não é lisboa ser atrativa, como o é Amesterdão ou Viena. O problema é que nos Países Baixos há mais de trinta por cento de oferta de habitação pública, a custos controlados, e em Viena há sessenta por cento, e em Portugal e Lisboa não chegam a dois e dez por cento esse números, a maior parte dos quais em habitação social que não foi dirigida para jovens nem para a classe média.

O problema não é Lisboa ser dinâmica. Como poderia não o ser? Essa parte é fácil; a parte que é uma arte difícil é saber juntar ao dinamismo a dignidade de todos, jovens e velhos, de longa data e recém-chegados, na diversidade que nos faz mais fortes. Dinamismo, com dignidade e na diversidade. Lisboa também precisa dos seus 3Ds.

Lisboa tem em si todas as respostas ao tempo presente e ao futuro: basta saber procurar e mostrar. Está, por exemplo, esta cidade cheia de quartéis vazios. O LIVRE tem-se feito porta-voz da causa das “ideias novas para edifícios velhos”, como costumamos dizer. Do Quartel de Sapadores ao da Ajuda, do de Campo de Ourique ao de Santa Clara, do que estamos à espera para ali pôr as creches e os centros de dia, as residências de estudantes e os espaços de teletrabalho e trabalho em equipa, as sedes de associações e cooperativas, os mercados de frescos e as bibliotecas, e as quintas de painéis solares para carregar as baterias dos mini-autocarros?

Por falar nestes, já ouviu falar dos “amarelinhos”? É uma proposta de há anos do LIVRE, de criar uma rede de transporte escolar ponto-a-ponto, em carrinhas e mini-autocarros elétricos, que permitam aos pais não tirar o carro para as ruas, e aos avós ir ao Centro de Saúde fora dos horários dos miúdos.

E as Veredas de Lisboa? A cidade merece novos caminhos, verdes e à sombra, talvez com o burburinho apenas de um regato, interligando os seus jardins e praças e parques.

E a Biblioteca Eduardo Lourenço, aberta até às tantas para toda a gente? E a Provedoria de Direitos Humanos? E o Gabinete Brasileiro de Leitura? E a Almirante Reis renovada a pensar em primeiro lugar nos peões? E a Avenida de Ceuta, trazendo à superfície a Ribeira de Alcântara, onde os romanos fizeram uma ponte?

Não precisamos de andar aos círculos. Lisboa serve para se ser feliz. Para todos e todas, e não apenas alguns, serem felizes. O que está a falhar é que há quem não esteja bem a ver a cidade que tem nas mãos.

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