Entrevista a Marisa Filipe: “A desregulação da economia e do mercado de trabalho já provaram a sua ineficácia”

Entrevista a Marisa Filipe: “A desregulação da economia e do mercado de trabalho já provaram a sua ineficácia”

Entrevista com Marisa Filipe, autora – conjuntamente João Vasco Gama e Pedro Lopes – da petição intitulada “Pela Proteção e Dignidade de Todos no trabalho independente” que tem como objetivo central a adopção de mecanismos legislativos que garantam uma Retribuição Horária Mínima Garantida (RHMG) para os trabalhadores que se encontrem a prestar serviço em regimes alternativos ao contrato de trabalho.

 

Quais as razões que levaram o LIVRE a lançar esta petição num momento em que se encontra em funções um governo de esquerda que tem vindo a legislar no sentido de diminuir a precariedade laboral e os falsos recibos verdes?

Os falsos recibos verdes, como o próprio nome indica, são falsos pois os trabalhadores têm responsabilidades para com o empregador como horário e tarefas bem definidas, que se adequam a um contrato de trabalho e por isso devem estar abrangidos por este. Aplaudimos todas as medidas que permitam a regularização destas situações, que só pecam por tardias.

A petição que o LIVRE lançou pretende que todos os profissionais liberais, ou seja, todos aqueles que não têm um empregador permanente ou para quem trabalhem grande parte do seu tempo, possam juntar ao seu trabalho, seja ele uma visita guiada, uma tradução, pintura de uma casa, etc., o valor por hora de trabalho. Por exemplo, os enfermeiros que trabalham em vários hospitais e clínicas passam a ter uma remuneração que não pode ser inferior a 8 euros por hora, um guia turístico acrescenta ao seu trabalho não apenas o valor da sua tour mas também o valor hora, tal como os advogados, carpinteiros, pintores, contabilistas e outras profissões liberais. Os profissionais liberais não têm horário de trabalho definido, o que faz com que alguns clientes nem sempre respeitem os horários do profissional liberal, pois só pagam a tarefa acordada.

Desta forma, a Retribuição Horária Mínima Garantida é essencial para a melhoria das condições de trabalho de todos os profissionais liberais representando igualmente um passo de natureza progressista que urge implementar se tivermos em linha de conta as características atuais do mercado de trabalho.

 

Na sua ótica, as medidas para combater a proliferação dos falsos recibos verdes têm sido suficientes?

Embora esta petição não diga respeito aos falsos recibos verdes, todas as medidas que permitam regularizar a situação dos mesmos só pecam por tardias, mas o processo está perto da sua conclusão. O Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários na Administração Pública (PREVAP) diz respeito a estes trabalhadores, mas cabe perguntar: então e aqueles que no futuro entrarem no Estado? Vamos continuar a colocar os trabalhadores numa situação de precariedade até serem incluídos num novo programa? E os que agora ficam de fora, quando é que vão ser integrados? E nas empresas, que medidas vão ser tomadas para a integração dos precários? O governo não pode legislar a olho e todos os trabalhadores que estejam numa situação de falsos recibos verdes devem estar regularizados através de um contrato de trabalho.

 

Porque é que a petição não exige o fim imediato desta situação que só é possível devido a uma permissividade legislativa que leva a que esta prática se torne regra em vez de ter um caráter de exceção?

Tal como já referi, é importante reforçar que esta petição propõe uma retribuição mínima horária garantida para todos os profissionais liberais, os verdadeiros recibos verdes. Estes profissionais não cumprem horário de trabalho para um empregador, nem exercem tarefas para apenas um empregador, mas sim para vários. Também não têm um horário de trabalho regular, mas sim horários desregulados que dependem do projeto. Estes trabalhadores precisam que o Estado e todos nós, percebam a dinâmica especial deste tipo de trabalho regulando o valor por hora. Quanto aos falsos recibos verdes, na nossa perspetiva têm de ser reforçados os mecanismos de dissuasão do seu uso como, por exemplo, aumentando as coimas às empresas que usem e abusem desta prática.

Gostaria ainda de sublinhar que a petição pretende que a utilização do recibo verde seja mais cara do que o contrato de trabalho ajudando desta forma a combater os falsos recibos verdes.

 

Não tem receio que algumas pessoas pensem que o LIVRE aceita os falsos recibos verdes pretendendo apenas uma melhoria das condições remuneratórias dos trabalhadores?

Não porque esta petição é muito clara nos seus propósitos e incide particularmente nas novas formas de trabalho que carecem de regulamentação que se ajuste à realidade que vieram preencher no mercado de trabalho. Identificámos que há muitos profissionais que não têm qualquer tipo de regulação o que leva a que trabalhem muitas horas sem qualquer valor mínimo legalmente exigido pelo seu trabalho, ou seja são trabalhadores com menos direitos, o que aumenta as suas obrigações ao mesmo tempo que restringe a sua proteção social e laboral. O que queremos é justiça social para todos, sejam trabalhadores por conta de outrem ou profissionais liberais.

Por isso, voltamos a realçar a visão progressista desta medida que olha para os profissionais liberais e para os seus problemas, procurando encontrar respostas e soluções adequadas. Para nós, todos contam.

 

Portugal é um dos países da União Europeia com maior precariedade laboral, se tivermos em linha de conta não só os trabalhadores que apesar de estarem obrigados ao cumprimento de um horário de trabalho imposto por uma entidade patronal são considerados trabalhadores independentes, como também os contratados a prazo que são cerca de 22% da população ativa. Na sua opinião, que medidas devem ser tomadas para ultrapassar este problema?

Esta petição terá um efeito dissuasor por parte do empregador no uso de recibos verdes já que, comparado com o valor do salário mínimo nacional, o uso de falsos recibos verdes custará ao empregador entre 25% a 30% mais do que o uso do contrato de trabalho. O Estado tem de dar o exemplo e recrutar trabalhadores através de um contrato de trabalho e assim deixar de utilizar os falsos recibos verdes. Nas empresas, defendemos maior fiscalização e o aumento das coimas quando o trabalhador está em situação irregular, ou seja, a falsos recibos verdes.

 

Há políticos que afirmam que a única forma de combater o desemprego passa pela flexibilização das leis laborais. Está de acordo?

Obviamente que não.

 

A desregulação foi defendida pelos organismos que integraram a troika (Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e Comissão Europeia) que continuam a advogar a necessidade de adoptar leis menos rígidas.

Os terríveis anos da troika falam por si nessa falácia que é o liberalismo e a desregulação económica: 847 mil portugueses perderam o emprego, 14 mil empresas faliram, meio milhão de jovens abandonaram o país. A desregulação da economia e do mercado do trabalho já provaram a sua ineficácia.

É preciso também alertar que a regulação da banca ainda está por fazer e que o governo e os parceiros parlamentares não têm apresentado respostas para a regulação bancária, propostas eficazes como a separação da banca de investimento da banca comercial, por exemplo. Também é preciso não esquecer que a troika fez vítimas em Portugal e na Grécia, mas ninguém foi responsabilizado.

 

Apesar de terem níveis de escolaridade mais elevados do que há alguns anos, os jovens não conseguem entrar no mercado de trabalho ou então deparam-se com situações de tal forma instáveis o que os leva a optar pela emigração. Perante este quadro, podemos dizer que estamos a hipotecar o futuro?

Embora os anos da troika tenham sido terríveis para a emigração da geração mais qualificada de sempre, as medidas que este governo tomou não são claramente suficientes para estancar a emigração. Veja-se o manifesto pela ciência e trabalho científico, que pugna por mais investimento e estabilidade nas carreiras científicas, assinado pelo próprio ministro.

Perante este quadro, é necessário mais investimento e legislação adequada, matérias estas que o LIVRE tem vindo sempre a defender, para impedir que a massa crítica abandone o país. Não nos podemos dar ao luxo de recuar em campos tão essenciais como a ciência. Se nada for feito, estaremos de facto a hipotecar o futuro.

 

Vivemos uma revolução tecnológica e o mundo do trabalho está em profunda mutação devido sobretudo à automação. Muitas profissões estão a desaparecer e outras acabarão por sofrer alterações muito significativas. Acha que os sindicatos estão preparados para enfrentar estes desafios ou ainda estão vinculados a uma realidade que vai deixar de existir?

Depende dos sindicatos. O sindicato dos enfermeiros, com quem já tivemos oportunidade de reunir, mostrou-se muito interessado na nossa petição percebendo a sua importância. Já pedimos reuniões com outros sindicatos e após essas reuniões poderemos inferir as suas posições, mas acreditamos que serão sensíveis a esta causa que diz respeito a 750 mil portugueses.

 

A petição tem sido bem acolhida pelas pessoas?

Sim, muito bem.

 

Que reações gostaria de destacar?

Todas têm sido positivas, mas gostaria de destacar que os emigrantes ainda não podem assinar esta petição, o que é uma grande injustiça, dado que ela também lhes diz respeito. A questão dos direitos dos emigrantes tem sido uma questão central para o LIVRE e aqui temos mais um exemplo de um direito que lhes é negado. Quanto às pessoas que já a subscreveram, ainda não tivemos nenhuma reação negativa o que nos leva a crer que esta vem preencher, tal como sempre defendemos, mais um buraco legislativo no que aos profissionais liberais diz respeito. Em suma, é mais uma medida progressista que visa alargar os direitos sociais dos trabalhadores.

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 Marisa Filipe é licenciada em História e mestre em Desenvolvimento, Diversidades Locais e Desafios Mundiais; João Vasco Gama é economista e Pedro Lopes é advogado e especialista em Direito do Trabalho