O LIVRE subscreve à Carta Aberta “Nós, as mulheres em situação de sem-abrigo, existimos!” lançada pelo movimento Mulheres p’lo Direito à Habitação (MuDHa), no passado dia 8 de Março, Dia Internacional da Mulher.
CARTA ABERTA
Nós, as mulheres em situação de sem-abrigo, existimos!
8 de Março de 2021
O movimento Mulheres p’lo Direito à Habitação (MuDHa) é uma rede feminista constituída por mulheres diversas, associações e colectivos que lutam pela igualdade de género e por condições habitacionais e de vida dignas. Somos um grupo de apoio mútuo e solidário. Agimos em conjunto e propomos soluções concretas e sistémicas de combate às várias opressões, discriminações e violências que nós, mulheres, vivemos diariamente e ao longo de todas as etapas da vida.
Somos mulheres e somos diversas. Somos as mães das famílias monoparentais que foram sujeitas à violência de um despejo. Somos as que ficámos sem casa, sem os nossos pertences e sem respostas sociais adequadas. Sabemos o que é viver em situações de grave precariedade habitacional que põem em risco a nossa saúde (física e mental), que ameaçam o bem-estar social e o nosso pleno desenvolvimento. Somos as mulheres migrantes. Vivemos situações de sobrelotação onde somos obrigadas a partilhar o mesmo tecto mesmo com quem não queremos estar. Somos as mulheres empurradas para a rua pelas violências doméstica, de género e institucional. Somos as jovens mães que procuram autonomia socioeconómica das suas famílias de origem e as não tão jovens que são obrigadas a regressar a casa dos pais devido à precarização das nossas vidas. Somos as idosas que foram forçadas a sair das suas casas, as que não estão protegidas dos despejos e do aumento das rendas. Somos continuamente ameaçadas pela possibilidade de não renovação dos contratos de arrendamento, e, em último caso, pelo perigo dos despejos.
Os problemas de acesso à habitação interseccionam-se com muitos outros: a discriminação étnico-racial, os conflitos familiares, os baixos salários, os empregos precários e/ou o trabalho informal, a exclusão social, as violências doméstica e de género, entre tantos outros. A pandemia provocada pela COVID-19 agudizou ainda mais estes problemas. As escalas social, económica e espacial das desigualdades acentuaram-se e são hoje mais visíveis, mais violentas e catastróficas, afetando desproporcionalmente a população feminina. Enquanto mulheres e raparigas, somos o grupo mais vulnerabilizado e o rosto da pobreza, precariamente dedicadas à economia dos cuidados. Apesar da escassez de dados actualizados sobre as consequências da crise sanitária no acesso à habitação, sabemos que a casa se tornou no epicentro das várias esferas da vida mas não para toda a gente.
Invisibilidade das mulheres em situação de sem-abrigo
Nós, as mulheres em situação de sem-abrigo, encontramo-nos ainda mais expostas a múltiplas violências, geralmente não consideradas nas escassas respostas existentes. A problemática da exclusão social e das situações de sem-abrigo é frequentemente representada por uma população masculina, isolada e que pernoita no espaço público. A masculinização deste fenómeno está bem patente tanto ao nível da definição e direcção de políticas públicas como ao nível da comunicação social e da ideia comum de pessoa em situação de sem-abrigo. Confrontamo-nos hoje com um registo crescente de mulheres e de famílias em risco de ou já em situação efectiva de sem-abrigo. Em 2019, cerca de 20% das 7107 pessoas em situação de sem-abrigo eram do sexo feminino (ENIPSSA*, 2017-2023). No entanto, estar em situação de sem-abrigo é mais do que viver na rua. Consideramos que a actual definição de pessoa em situação de sem-abrigo não espelha todas as vivências experienciadas pelas mulheres e pelas famílias que se
encontram nestes contextos de vulnerabilidades.
Para nós, mulheres, os receios da exposição à violência vivida nas ruas resulta na procura de outras opções que não sejam a ocupação do espaço público. De forma a garantir a protecção e a segurança pessoal e familiar, procuramos abrigo em locais menos acessíveis e invisíveis. Quando acumulamos o papel de mães e/ou cuidadoras, encontrar um espaço seguro torna-se prioritário. Perante a falta de casa, a ocupação de edifícios vazios ou abandonados revela-se a solução mais imediata; ainda que estes não cumpram as condições mínimas de habitabilidade. Aterrorizadas
diariamente pelo peso da possibilidade de retirada das nossas crianças, ocultamos tantas vezes essas situações de sem-abrigo. Ficar sem casa é o fim do caminho para muitas de nós, o culminar de um ciclo de pobreza difícil de quebrar.
Nós, mulheres que vivemos na rua, somos colocadas numa situação mais vulnerabilizada do que os homens, estando sujeitas a abusos e a humilhações constantes. Os albergues existentes excluem respostas sensíveis ao género e são espaços inseguros. A insegurança agrava-se para as que vivemos em contexto de prostituição e/ou consumimos substâncias psicoactivas. Não só enfrentamos sérios problemas de criminalização e de exclusão habitacional como também múltiplas violências por parte de clientes, polícia e vizinhos.
Vulnerabilidade habitacional e violência doméstica
Entre os diferentes factores que influenciam a situação das mulheres em risco, a violência doméstica, tantas vezes invisível, leva a que abandonemos as nossas casas quando tememos pelas nossas vidas. Outras vezes, aguentamos e ficamos, pelas crianças, perante a falta de apoios e de alternativas. Vemo-nos obrigadas a coabitar com o nosso agressor pelo medo e a escassez de soluções adequadas. Nós, as sobreviventes da violência doméstica que só encontramos resposta nas casas abrigo, não nos encaixamos na definição de sem-abrigo e somos consideradas população em risco (ENIPSSA, 2021). Assim, as soluções que nos são reservadas são o abandono da nossa residência e da rede de suporte comunitária e a eventual integração em abrigos de emergência. Temos o direito de escolher onde vivemos e como vivemos!
Reivindicações
Reclamamos a urgência de considerar a questão de género nas políticas públicas da habitação em Portugal e a adaptação das respostas institucionais interseccionais para a população em contexto de exclusão habitacional e situação de sem-abrigo. Precisamos de políticas públicas que incluam os cuidados em primeiro lugar. Exigimos espaços seguros, onde todas possamos ser cidadãs plenas e decidir os nossos rumos, alimentar as nossas redes de afectos e contribuir para construção do futuro, individual e coletivo.
Tendo em conta a crise habitacional que vivemos e as nossas especificidades de mulheres em situação de sem-abrigo ou em risco de exclusão habitacional, propomos:
Medidas Gerais
1 – Aumento urgente e imediato do parque habitacional público, assim como aumento do orçamento alocado para tal. A habitação pública tem de respeitar a qualidade espacial e material das casas, e a justiça territorial na sua localização e distribuição pelo território nacional. Adequar o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) à realidade de precariedade habitacional agudizada pela pandemia da COVID-19;
2 – Reforço de medidas que revertam as lógicas do actual mercado imobiliário português, garantindo o efetivo direito à habitação a toda a população;
3 – Criação de estruturas públicas de acolhimento e integração da população em situação de sem-abrigo, com enfoque na questão de género;
4 – Promoção de políticas públicas que apoiem as famílias monoparentais e/ou as mulheres e as crianças sobreviventes de violência doméstica, tendo em conta as especificidades de cada caso para que as famílias se mantenham unidas;
Medidas Específicas
5 – Alargamento do conceito de pessoa em situação de sem-abrigo, abrangendo diferentes estratégias e vivências com perspectiva de género: quem pernoita em habitações não convencionais e sem condições mínimas de habitabilidade, quem se socorre temporariamente de habitações convencionais de familiares ou amigos/as, quem pernoita em pensões por falta de alternativas adequadas de acomodação e quem permanece em habitações sobrelotadas;
6 – Visibilidade e reconhecimento de que as estratégias de ocupação de imóveis pelas mulheres são uma forma de situação de sem-abrigo (a ENIPSSA 2017-2023 apenas reconhece parcialmente esta situação), sem lugar à sua criminalização;
7 – Alargamento do programa de alojamento urgente Porta de Entrada para sobreviventes de violência doméstica e pessoas que tenham sido despejadas sem alternativa de habitação;
8 – Criação de novas estruturas com equipas interdisciplinares preparadas para prevenir e responder a problemas habitacionais;
9 – Criação de espaços seguros, com privacidade e adaptados às especificidades e necessidades das mulheres, crianças e pessoas LGBTI+ que já estão em situação de sem-abrigo ou em exclusão habitacional;
10 – Disponibilização de mais programas de Housing First que se direcionem especificamente para mulheres, crianças e pessoas LGBTI+.
Queremos que se cumpra a Constituição da República Portuguesa que reconhece o direito à habitação enquanto direito humano fundamental. Num momento crucial em que ter casa – acessível, digna e segura – significa proteção e saúde, dizemos que a casa é o elemento básico para a estabilidade das nossas vidas. Para que nós, mulheres, possamos afirmar-nos como cidadãs plenas!
Mulheres p’lo Direito à Habitação (MuDHa)
mulheresdireitohabitacao@gmail.com