“Por um RBI emancipatório”, por André Barata

“Por um RBI emancipatório”, por André Barata

Por um RBI emancipatório

Estas são as notas que organizei a partir da minha participação na iniciativa de debate público do RBI (Rendimento Básico Incondicional) , promovida pelo partido PAN e vários outros parceiros.

(por André Barata)

O fim do trabalho

1. Apenas uma catástrofe civilizacional inverteria a tendência cada vez mais pronunciada para a escassez, se não mesmo extinção, do trabalho nas economias mais desenvolvidas. Não esperando o pior só pode, pois, ser esperado que rendimentos passem a ser conferidos a cidadãos independentemente de quaisquer outras considerações. Discutir se deverá haver um RBI ou não é espúrio. É apenas uma questão de tempo. O que não está fechado e permanece verdadeiramente uma questão em aberto é o significado que um RBI assumirá no futuro em que muito certamente virá a ser implementado. Pode servir à emancipação, humanizando a vida em sociedade, como pode servir para, pelo contrário, fazer sobreviver um sistema de dominação. E por esta razão, a discussão do RBI não pode ficar confinada a tecnicalidades. Não está em causa apenas a criação de um novo instrumento de políticas públicas. Está em causa uma discussão política profunda sobre o modo como queremos viver em sociedade. E essa é ainda a razão para que a esta terrível ambivalência dos usos possíveis do RBI não se deva responder com um recuo por parte de quem pugna pela emancipação. A ambivalência é uma razão não para recuar em dúvidas, mas para agir vencendo-as. Desde logo, para não entregar o RBI à parte que apenas procura nele um sucedâneo do trabalho para, assim, poder perpetuar a sociedade do consumo e o produtivismo.

2. Num futuro que já vai bem adiantado no nosso presente, o trabalho escasseará por razões que já não podem, seriamente, ser pensadas nos termos de um exército industrial de reserva que põe o emprego sob pressão, como é tradicional pensar-se à esquerda. As economias dos países socialmente mais desenvolvidos cada vez dependem menos do trabalho e mesmo os segmentos da economia que dependem e sempre dependerão do trabalho vão substituindo progressivamente mão-de-obra por automação. Nestes casos, a economia tende, na verdade, a libertar a produção de riqueza da dependência do trabalho humano[1]. Por muito explorado que este continuasse a ser, a verdade é que será sempre menos produtivo e rentável do que as oportunidades que a automação cria e continuará a criar. Para grande parte da atividade económica, os homens e as mulheres parecem destinados ao papel exclusivo de consumidores. Por isso, doravante, o desemprego estrutural e galopante não será um problema económico mas sim um problema social. Na verdade, até dois problemas sociais. Em primeiro lugar, numa sociedade em que o trabalho não apenas escasseia e rareia, mas se vê votado a uma extinção progressiva, evidentemente o rendimento imprescindível a uma vida digna das pessoas não pode ficar refém de haver trabalho. Em segundo lugar, a tendência de as economias excluírem os cidadãos da cadeia produtiva, relegando-os para a posição de consumidores, não pode conduzir a uma sua exclusão generalizada da atividade produtiva da própria sociedade.

3. Não estarmos diante de um problema estrutural de incapacidade de produção de riqueza mas, antes de estrutural perda de trabalho, garante condições para a imprescindível necessidade de desligar o direito de todo o cidadão a um rendimento digno de quaisquer considerações relativas ao trabalho que se tem ou se deixa de ter. Na realidade, no que respeita a aquisição de um rendimento básico, que garante uma vida minimamente boa, as considerações sobre trabalho devem ser tão irrelevantes como, suponhamos, considerações sobre as pessoas serem louras ou morenas.

4. Mas não basta dar uma resposta assente na incondicionalidade do direito a um rendimento básico. Este direito ser incondicional não significa que seja suficiente. É igualmente necessário dar resposta ao problema da inscrição dos cidadãos numa vida ativa. Por isso, um rendimento básico incondicional não pode garantir apenas a sobrevivência, matando a fome e garantido a reprodução – no que seguiria as condições da reprodução da mão-de-obra na era industrial –, mas garantir uma vida minimamente boa, ou seja, uma vida com as condições mínimas que proporcionem a todo o cidadão a possibilidade de uma vita activa de realização pessoal na e com a comunidade, à maneira do que pensou Hannah Arendt. De outro modo, o RBI mais não será do que o substituto do trabalho numa sociedade do consumo e do produtivismo, garantindo a sua perpetuação.

5. O resultado até poderia ser pior do que uma sociedade do trabalho, como muito bem ilustrou Kurt Vonnegut, na sua novela Utopia 14 (ou Player Piano, que era o seu título original), publicada em 1952. Esta obra de ficção científica procurou ser a expressão literária de uma distopia, mas muito mais uma distopia social do que as distopias políticas suas contemporâneas, focadas no problema do totalitarismo. A sociedade futura que Vonnegut descreve perdeu o emprego através de uma meticulosa substituição de quase todas as ocupações humanas por mecanismos de automação. Dessa maneira, a grande maioria da população viu-se excluída, posta de parte, a braços com um sentimento de inutilidade atestado por uma realidade de desemprego. Em contrapartida, uma minoria cada vez mais escassa, e acossada pela possibilidade de também ela se tornar inútil, prossegue no comando deste mundo social, convencida de que faz bem, até porque o resultado final é o de melhor bem estar para a população, que não passa fome e vê as suas necessidades básicas garantidas. Com exceção da mais fundamental de todas: o sentimento de participar e de ter lugar.

6. Para satisfazer esta necessidade humana de participação e inclusão, não basta um rendimento que garanta a sobrevivência. Na realidade, uma vida minimamente boa, que garanta as capacidades de participação e inclusão, nem sequer pode ficar confinada a uma dimensão pecuniária, por importante que esta seja. Este ponto é, aliás, bastante relevado pelos defensores de uma agenda decrescentista[2], que na verdade tendem a integrar a reivindicação por um RBI dentro de uma reivindicação mais vasta de uma “dotação de autonomia incondicional”, que inclui ainda serviços públicos, direitos fundamentais, acesso gratuito a bens de proximidade, em vista de uma realização do “Buen Vivir”.

Vencer a desigualdade

7. O horizonte de extinção do trabalho não é a única razão do nosso tempo para que um RBI seja encarado como uma política de futuro. Uma segunda razão nossa contemporânea está no facto de as desigualdades não pararem de crescer, tendência a que não é indiferente a persistência da pobreza e da miséria como um fenómeno de massas. A OCDE tem assinalado que essa é uma tendência constante desde os anos 70. E sabemos hoje, pela OXFAM, que o 1% mais rico já é mais rico do que todo o restante mundo. Se a social-democracia pretendia corrigir as desigualdades e introduzir lógicas de igualdade, então o seu fracasso vai sendo notório. Por isso, há um passo em frente a dar: reconhecer que não basta remediar as desigualdades e que é preciso antes preveni-las, garantindo um rendimento a todos os cidadãos, que traga mais igualdade para as condições de partida de todo e cada cidadão. Também se chama a isto pré-distribuição, em contraste com a redistribuição meramente corretora.

8. Pode ser feito aqui um paralelismo com os conceitos negativo e positivo de liberdade de Isaiah Berlin, em que o primeiro exprimia o direito à não-interferência ao passo que o segundo sublinhava uma ação em prol da autonomia. Em termos análogos, há também uma social-democracia meramente corretora, que redistribui para corrigir ou remediar sem interferir, e que podemos qualificar como negativa. E há uma social-democracia capacitadora, que faz da igualdade menos um ponto de chegada do que um ponto de partida, interferindo no ciclo de reprodução do capital. Essa qualificaremos como positiva.

9. Esta perspetiva de uma social-democracia positiva, que radicaliza dimensões de pré-distribuição face às suas dimensões redistributivas, e que o faz proporcionando rendimento a quem não o tem, é fortemente combativa, mesmo pensando em termos de luta de classes. O que a pré-distribuição faz, ao introduzir igualdade no ciclo da reprodução do capital, é boicotar, dentro dele mesmo, a sua intencionalidade de acumulação e incremento da desigualdade. É como se o capital fosse um vinho que aguássemos até pouco ou nada embriagar. A combatividade da pré-distribuição está em deixar de enfrentar de fora o capitalismo, o que nos leva sempre a um conflito entre interesses contraditórios, mas desativando a nocividade do dispositivo que produz, reproduz e perpetua a desigualdade social. No fundo, são dois ganhos: desmobiliza-se a produção da desigualdade e desloca-se a “luta de classes” de um colisão direta entre classes sociais para o dispositivo que verdadeiramente está na origem do conflito. Sempre que possível, esta deslocação deve ser feita pois não são as pessoas que fazem a classe social, mas um sistema que as organiza socialmente.

10. Esta desmobilização da produção da desigualdade torna possível produzir menos, desativar o produtivismo que se alimenta da necessidade de produzir, permitindo pensar a transição para um paradigma onde a expressão do progresso não seja crescimento económico e da riqueza. Desativar o produtivismo significa desacelerar também o tempo social e ainda trazer de novo o direito ao ócio e ao lazer improdutivos. Pois, precisamente o ócio e o lazer têm sido colonizados por uma produção que se faz agradável para se dar condições de se tornar mais intensa, incrementada, competitiva.

11. Uma sociedade de pleno emprego, rica e pouco desigual não teria menos motivos – pelo contrário – para reconhecer o direito a um rendimento básico incondicional aos seus cidadãos. Essa é uma sociedade que, na verdade, pode. E se pode, deve. A única diferença é que não teria de esperar que fosse uma necessidade efetiva. Infelizmente, a História faz-se menos de possibilidades do que de necessidades. Mas o princípio é o mesmo: Em sociedades cujo funcionamento assenta na existência de rendimentos, deve ser reconhecido a todo o cidadão o direito a um rendimento básico incondicional, tal como se reconhecem os direitos à habitação, à educação, à saúde.

A crítica do trabalho

12. É imprescindível às pessoas participarem na comunidade em atividades realizadoras. A questão que devemos enfrentar num plano de emancipação e maior dignidade humana é saber como a sociedade deve organizar os seus estímulos/incentivos a atividades em prol da comunidade e da realização pessoal. Mais precisamente: Por que razão a fonte de incentivo e esforço havia de estar na necessidade de obter o rendimento básico para se subsistir decentemente e não, assegurado este, na criatividade, na vontade livre de projetar e realizar? Não é esse o objetivo de todas as pessoas ativas quando tentam precisamente libertar-se do trabalho que lhes garanta a subsistência? De outro modo continuamos a tratar-nos como uma espécie de animais domésticos que só fazem coisas porque têm fome e porque só as fazendo obtêm o rendimento com que matar a fome ou suprir alguma necessidade. No lugar desta inaceitável violência implicada na subsistência não garantida, há que gerar incentivos alternativos para manter uma sociedade ativa. Certamente políticas de incentivos remuneratórios não baseados em rendimentos, mas em reconhecimento e realização, com valorização de um fazer em autonomia.

13. Mas há um problema mais estrutural ainda. E que se prende com o próprio conceito de trabalho. A concepção que se tornou dominante – e de forma transversal à grande maioria das opções ideológicas – faz do trabalho um valor e, enquanto tal, uma entidade transacionável. Logo aí está a raiz do problema. Enquanto valor transacionável, o trabalho compra-se e vende-se. Mas o que estamos realmente a vender quando vendemos a nossa capacidade de trabalho senão a vida que vivemos? Organizarmos a sociedade em termos de compra e venda do nosso tempo e capacidades é uma concepção opressiva. Até por uma razão de natureza inultrapassável – o que transacionamos não pode ser transacionado de volta. Podemos comprar o trabalho de outrem, mas o nosso, que vendemos, já não regressa. É tão irreversível como o tempo. Num mundo socialmente desigual esta concepção opressiva do trabalho agrava-se de forma muito patente. Pois uns – que não têm rendimentos – terão de descontar do seu tempo de vida todo o tempo em que lutarão pela subsistência, ao passo que outros poderão beneficiar do seu tempo de vida e, na realidade, do tempo de vida dos outros.

14. Esta concepção do trabalho como valor transacionável, em que realmente nos transacionamos a única vida que podemos viver, não deixa de ser opressiva por não nos desagradar o que fazemos quando trabalhamos. Essa não é a questão fundamental. Um exemplo ajudará a perceber o ponto. Em grande medida o ensino era, na Antiguidade, uma tarefa atribuída a escravos, que possivelmente se sentiriam tão satisfeitos e realizados no que respeitava a essa tarefa como um professor hoje. A escravatura feliz não deixa de ser escravatura. A opressão inerente ao trabalho concebido como transação também não cessa por o trabalho poder ser agradável, mesmo realizador. Pelo contrário, ser agradável é uma boa forma de incrementar a sua produtividade. É o sistema que deve ser visado.

Duas notas finais

15. Talvez, depois de séculos de exploração, não devêssemos chamar trabalho a uma atividade humana emancipatória que deixe de assentar numa concepção transacionável do esforço e do tempo humana, e ligada à supressão de necessidades. Mas continuemos a chamar-lhe trabalho ou usemos de outras designações, está sempre em causa desmercadorizar a vida ativa humana.

16. Organizar uma rendimento desta natureza é organizar uma maneira diferente de distribuir os rendimentos já existentes. Bem vistas as coisas, não se trata exatamente de ir buscar mais dinheiro, mas de mover mais dinheiro. Implicaria certamente uma maior provisão, mobilizando mais impostos, mais receitas, mas precisamente para se distribuir mais, dentro de uma mesma comunidade. Como se todos estivéssemos dispostos a dar mais para entre nós distribuir mais, o que significa um compromisso comunitário maior. Mas, sobretudo, implicando no esforço de provisão a economia cada vez menos dependente do trabalho humano, colocando-a ao serviço da comunidade. De uma comunidade menos desigual, mais ligada, mais livre.

[1] Tanto mais quanto, nas economias emergentes, com pouco direitos sociais e uma enorme pressão demográfica, os custos de trabalho são incomparavelmente mais baixos.

[2] Designadamente em França. Logo no “prólogo” do Manifesto por uma dotação incondicional de autonomia, promovido pelo Parti Pour La Décroissance, Paul Ariès afirma – “Há que acabar com mais de 20 anos de luta falida a favor da renda social e não devemos deixar-nos enganar quando os nossos oponentes (…) falam de “dividendo social”. O que se enfrenta à direita não é apenas o montante do rendimento básico, nem o seu caráter universal  ou não, incondicional ou não, mas que lugar ocupa este rendimento básico universal e incondicional enquanto instrumento de saída do capitalismo e do produtivismo. Por outras palavras: a Dotação Incondicional de Autonomia não é simplesmente um rendimento de sobrevivência! Está vinculada à noção de dom, de gratuitidade, à construção dos “bens comuns”…” (Cf. Vincent LIEGEY, Stéphane MADELAINE, Christophe ONDET e Anne-Isabelle VEILLOT, 2012. Pour un projet de décroissance. Manifeste pour une dotation inconditionnelle d’autonomie. Paris: Les Éditions Utopia).