Desde a criação do Serviço Nacional de Saúde (SNS), em 1979, as leis que regulam o sector em Portugal têm sofrido várias alterações. A mais importante foi a publicação da Lei de Bases da Saúde em 1990, tendo o SNS deixado de ser gratuito no momento da procura de cuidados e, essencialmente, passando a haver um “Sistema Nacional de Saúde” que integra desde então os serviços públicos (SNS) bem como os privados em concorrência pouco regulada. Inclusivamente, passou a ser possível que a gestão dos serviços públicos fosse feita por privados através de Parcerias Público-Privadas (PPP).
Nos anos da crise, com as políticas de contenção de custos impostas pela troika e pelo governo PSD-CDS, agravou-se a deterioração dos serviços públicos e houve uma consequente entrega de parte da prestação de cuidados a privados. Voltou a surgir a ideia dominante antes da Revolução de Abril de que para ter acesso a bons cuidados de saúde é essencial dispor-se de recursos financeiros – a Saúde entrou no “mercado”. E assim continua. Os serviços públicos continuam desfalcados e com a sua capacidade de resposta deficitária em muitas áreas (e não só nas cirurgias, nem só quando há greves dos profissionais de saúde). Apesar de termos um governo do PS apoiado pela esquerda desde outubro de 2015, a degradação do SNS continua. Esta nova proposta de alteração da Lei de Bases da Saúde, da forma como está feita, é bem-vinda e necessária para garantir que os residentes em Portugal continuam a poder contar com um serviço público de qualidade, universal e não discriminatório.
António Arnaut e João Semedo fizeram, em 2018, pouco antes de nos deixarem, uma proposta para a nova Lei que, na sua generalidade, ia ao encontro daquilo que o LIVRE deseja para o país, principalmente no que diz respeito à devolução da gratuitidade no momento da procura de cuidados, à proposta de gestão pública dos serviços públicos (fim das PPP na saúde) e ao retorno a uma eventual relação de complementaridade entre público e privado regulada pelo Estado.
Entretanto, outras propostas foram sendo elaboradas por partidos com assento parlamentar, tendo a do PS sido aprovada em Conselho de Ministros em Dezembro de 2018, estando agora a ser debatida na Assembleia da República. Lamentamos que dentro da própria “Geringonça” tenham surgido três propostas diferentes, tendo-se perdido uma boa oportunidade de produzir um documento que representasse uma visão consensual de todos os seus constituintes.
A proposta do Governo é, em geral, melhor que a aprovada pelo governo de Cavaco Silva em 1990, pois deixa de colocar o SNS e os privados em relação de concorrência e devolve a gestão pública aos serviços públicos, entre outras coisas. No entanto, não devolve a gratuitidade do SNS aquando da procura de cuidados e continua a ser pouco ambiciosa quanto à promoção da saúde física e mental e à prevenção da doença.
No debate que teve lugar no passado dia 23 de janeiro de 2019 na Assembleia da República, foi possível constatar que a direita (PSD e CDS) continua fiel aos seus princípios que ditam que a saúde é um bem como outro qualquer, podendo ser transacionada como mercadoria valiosa e usada como fonte de lucro para os privados. As suas propostas de alteração à Lei de Bases da Saúde promovem, portanto, um agravamento de um processo que visa o desmantelamento do Serviço Nacional de Saúde através da sua deterioração progressiva.
O deputado do PAN não se pronunciou, talvez por não querer escolher entre a esquerda a direita. O LIVRE lamenta o desperdício dos 60 segundos a que o seu partido tinha direito neste debate tão importante.
Já o PS mostrou claramente que não está com a direita neste assunto tão importante para os cidadãos e até piscou o olho ao BE e à CDU, prevendo-se novas negociações dentro da “Geringonça”. Ainda assim, a abolição das taxas “moderadoras” (que nada moderam e que são uma barreira ao acesso de muitos cidadãos aos cuidados de saúde) bem como a separação completa entre público e privados propostas pelos partidos à esquerda do Governo chocam com a posição mais moderada do PS e vice-versa. Alguém vai ter de ceder, se o intuito é inverter o sentido da Lei de Bases atual e voltar a valorizar o Estado como garante da proteção da saúde de todos.
Após o debate, depreende-se que o Sr. Presidente da República não irá ter o consenso ao qual apelou há dias. Em relação a isso, talvez valha a pena relembrar que a atual Lei de Bases (a de 1990, que fomenta a concorrência entre SNS e privados e que introduziu as taxas “moderadoras”) foi aprovada apenas pelo PSD com abstenção do CDS e votos contra de todos os restantes deputados. Nessa altura não foi necessário um consenso “ao centro” para que a lei passasse, pelo que agora é de lamentar essa exigência em tom de ameaça de veto por parte do Presidente. Numa democracia, os cidadãos escolhem quem querem que faça a gestão do país e neste momento temos uma maioria de esquerda empenhada em salvar o Serviço Nacional de Saúde através de propostas de lei que restauram a sua gestão pública e redirecionam os milhares de euros pagos aos privados para a recapitalização dos seus recursos humanos. Marcelo Rebelo de Sousa quererá ficar para a história como o Presidente que vetou a Lei que devolveria aos portugueses a esperança num SNS de qualidade para todos?
O LIVRE continuará a acompanhar atentamente as alterações à Lei de Bases da Saúde, da qual depende em grande parte o futuro da saúde da população residente em Portugal. Declaramo-nos, obviamente, do lado dos partidos que querem um SNS público, universal e gratuito. Opomo-nos aos que querem um SNS residual e de menor qualidade para quem não tem capacidades de pagar aos privados que, no fundo, são em parte financiados pelo orçamento do estado através de acordos com o SNS.