Gastão Cruz 1941-2022

Gastão Cruz 1941-2022

Voto de Pesar pela morte de Gastão Cruz

Foram 80 anos de um discreto, mas fecundo caminho dedicado à escrita, que laborou na sua poesia, nos seus ensaios críticos, nas suas traduções e no palco do Teatro que dirigiu. Gastão Cruz, um dos mais premiados poetas em Portugal, deixou-nos no domingo e ao partir, entrega-nos todo um legado lírico pautado por uma reverência rigorosa e contida da palavra.

Em 20 de julho de 1941, Gastão Santana Franco da Cruz nascia em Faro, no seio de uma família que cultivava um ambiente propício ao seu precoce interesse pela prática poética, publicando com cerca de 20 anos o primeiro livro de poesia “A Morte Percutiva”. 

Mas antes disso, não fora portanto surpreendente a opção de partir para Lisboa em 1958, com o intuito de frequentar a licenciatura em Filologia Germânica, na Faculdade de Letras, tendo então como seu docente David Mourão-Ferreira, bem como uma crescente produção poética e crítica, colaborando em vários jornais e revistas, como os “Cadernos do Meio-Dia”, publicados em Faro, sob a direção de António Ramos Rosa e Casimiro de Brito.

A primeira obra que publicou surge então no âmbito de uma edição coletiva – “Poesia 61” – na qual participam para além de Gastão Cruz, alguns outros nomes notáveis da nossa escrita, como Casimiro de Brito, Luiza Neto Jorge, Maria Teresa Horta e Fiama Hasse Pais Brandão com quem se viria a casar, tendo a publicação assumido um papel significativo na renovação do discurso poético no país.

O período universitário foi, assim, percorrido com intensidade, como o exigiram aqueles tempos das greves académicas de 1962, chegando mesmo a ser preso nesse ano. Em 1964, é coorganizador da “Antologia de Poesia Universitária”, na qual se revelam poemas de outras figuras prestigiadas como António Torrado, Boaventura Sousa Santos, Eduardo Prado Coelho, José Carlos Vasconcelos, Luísa Ducla Soares, Manuel Alegre, Ruy Belo. 

E aqui inicia-se numa das mais relevantes dimensões do seu trajeto, enquanto crítico, pedagogo e divulgador da língua portuguesa e da produção literária do país, trabalho que se refletiu não apenas nos seus ensaios, alguns deles reunidos em “A Poesia Portuguesa Hoje” de 1973 ou, mais recentemente, em “A Vida da Poesia – textos críticos reunidos” de 2008, na organização de diversas antologias, mas também na docência, tanto no Ensino Secundário, no qual permaneceu desde 1963, como enquanto Leitor de Português no King’s College London, onde além de Língua Portuguesa, lecionou cadeiras de Poesia, Drama e Literatura Portuguesa, entre 1980 e 1986.

Publicou obras como “Campânula” (1978), “Órgão de Luzes” (1990), “As Pedras Negras” (1995), “Escarpas” (2010), “Observação do Verão” (2011), “Fogo” (2013), “Óxido” (2015) e “Existência” (2017), o último livro, reunindo o seu trabalho em diversos momentos, nomeadamente em 1992, com “Transe – Antologia 1960-1990” e em 2009, com “Os Poemas”.

A sua ligação ao mundo do teatro, nutre-se muito na relação com Fiama Hasse Pais Brandão, encontrando-se ambos na fundação do Grupo Teatro Hoje, criado em 1975 e posteriormente fixado no Teatro da Graça. Gastão Cruz assumiu inclusive a direção da companhia, entre 1991 e 1994, ano do seu encerramento. Nesse palco, encenou peças de Camus, Crommelynck, Strindberg e Tchekov ou uma adaptação da sua autoria de “Uma Abelha na Chuva” (1977), de Carlos de Oliveira.

Dedica-se igualmente à tradução de obras de autores notáveis da literatura mundial, como, Jean Cocteau, Jude Stéfan, William Blake e William Shakespeare, destacando-se ainda na sua carreira o facto de ter sido um dos diretores da Fundação Luís Miguel Nava e da revista “Relâmpago”, publicada por esta instituição.

A profunda dedicação à língua e à escrita foi reconhecida em inúmeros prémios e agraciações, salientando-se entre estes o Prémio D. Diniz, em 2000, pelo livro “Crateras”; o Prémio do P.E.N. Clube Português de Poesia, em 1985, 2007 e 2014, respetivamente, pelas obras “O Pianista”, “A Moeda do Tempo” e “Fogo”; o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores, em 2002, pela obra “Rua de Portugal”, na qual recorda o local onde nasceu; o Grande Prémio de Literatura DST, em 2005, por “Repercussão”, e o Prémio Literário Correntes d’Escritas/Casino da Póvoa, em 2009, por “A Moeda do Tempo”. Em 2013, a Fundação Inês de Castro atribui-lhe o Prémio Tributo de Consagração, em 2018, recebe a Medalha de Mérito Cultural do Ministério da Cultura e em 2019, é distinguido pelo Presidente da República, com o grau de Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique. 

Em poetas como Luís Vaz de Camões, a partir do qual traz para a contemporaneidade a forma clássica do soneto, ou mesmo António Ramos Rosa, encontra Gastão Cruz algumas das principais referências para o labor do seu verso que classifica como “zona proibida”, um território frugal onde a construção lírica adquire uma enorme precisão e a palavra é escolhida com grande nitidez e depuramento. É por tudo isto que, falecendo na data anterior ao Dia Mundial da Poesia, evocamos Gastão Cruz e o seu último gesto de total rigor, ao intitular como “Existência” a obra derradeira.

 

Voto de pesar aprovado por unanimidade na Assembleia Municipal de Lisboa de 22 de março de 2022

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