Na Quinta da Torre Bela, na Azambuja, foram abatidos 540 veados, gamos e javalis por 16 caçadores, no final da passada semana. Apesar da Quinta ter uma área de 1100 ha, o perímetro murado impediu os animais de fugirem, o que resultou num extermínio de proporções inaceitáveis, cujo registo fotográfico foi partilhado nas redes sociais – e posteriormente eliminado dados os comentários críticos à publicação.
O LIVRE vem desta forma comunicar absoluto repúdio pelo massacre destas centenas de animais.
Atendendo ao declínio generalizado da biodiversidade, com uma redução das populações de vertebrados de cerca de 60% nos últimos quarenta anos, é fundamental que em Portugal se promova o princípio geral da recuperação das populações das espécies selvagens autóctones, incluindo dos predadores – que entretanto também foram alvo deste declínio – das redes tróficas, dos habitats e dos ecossistemas. Sendo a caça direta uma das causas principais para o declínio da biodiversidade, conforme tem sido salientado pela comunidade científica e pelas organizações não-governamentais de ambiente nacionais e internacionais, a promoção desta prática para fins considerados desportivos é altamente questionável.
No LIVRE, sabemos que os herbívoros selvagens asseguram diversas funções dos ecossistemas, vitais para a resiliência do nosso território. O declínio destas espécies dificultou historicamente, por exemplo, o controle natural da matéria combustível na floresta e o consequente aumento do risco de incêndio. O recurso à herbivoria conduzida por espécies domésticas (ovelhas e cabras) tem sido proposto como resposta a esta situação. Contudo, a recuperação das espécies selvagens deve ser um dos objetivos prioritários.
Temos noção de que, atualmente, uma dinâmica predador-presa deficitária causa também desequilíbrios populacionais e é possível que nalgumas regiões a população local de alguma espécie de herbívoro possa momentaneamente aumentar desproporcionalmente. São conhecidas ocorrências deste género a respeito do javali. É com base nesta realidade que se tem procurado justificar alguma da caça desportiva, em Portugal. Não obstante, o princípio da recuperação das redes tróficas naturais deve prevalecer.
Em nenhum momento poderão ser toleradas ações de caça que concentrem um número tão elevado de abate indiscriminado num escasso período de tempo e de espaço como se verificou na Quinta da Torre Bela.
O LIVRE destaca ainda que, apesar de duas das espécies em causa – o veado e o javali – terem um estatuto de conservação ‘Pouco Preocupante’, de acordo com o Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal, tendo o gamo o estatuto de “Não Aplicável’ por já não existirem populações silvestres reconhecidas no território, a ocorrência quase exclusiva dos cervídeos em áreas privadas dedicadas à caça é efectivamente preocupante, devendo o governo e as autarquias assumir como objectivo a recuperação de populações selvagens para fins verdadeiramente conservacionistas.
Para além do abate indiscriminado de centenas de animais, no caso da Quinta da Torre Bela está em causa o incumprimento da lei ao não ter sido pedida a devida autorização de caça ao ICNF e ao não terem sido colocados os selos adquiridos ao Estado nos animais abatidos, conforme dita a legislação de caça. Mais dúvidas levanta este caso quando é conhecido que naquele terreno se planeia construir uma central fotovoltaica com 775 ha, cujo Estudo de Impacte Ambiental, que se encontra em fase de consulta pública, previa a necessidade de deslocar os animais que ali habitavam para outro destino, o que também levanta questões sobre os motivos da realização da montaria.
É urgente esclarecer o que ocorreu, assim como o destino que será dado aos animais abatidos. Desta forma, deverão ser tornados públicos os resultados da investigação – que se pretende célere mas rigorosa – que irá decorrer na sequência da queixa apresentada pelo Ministério do Ambiente ao Ministério Público.
Finalmente, o LIVRE aproveita esta ocasião para destacar a necessidade já antiga de realização de uma ampla revisão da Lei da Caça, para que esta finalmente se enquadre no tempo, conhecimento científico e valores atuais da população portuguesa. Até que tal revisão seja feita, urge inspecionar todas as atuais zonas de caça do país e repor o calendário venatório anual assente numa avaliação mais frequente e rigorosa do estado das populações das nossas espécies selvagens.