Pela vitória do bom senso e do cinema português

Pela vitória do bom senso e do cinema português

O cinema português tem vindo a ser alvo de atenção e reconhecimento quer de um crescendo nacional de espectadores quer no plano internacional, com importantes prémios, fruto do esforço e da inventiva dos seus criadores e técnicos, de que só pode o país regozijar-se e felicitar-se.

Não obstante essa vitalidade, a atividade cinematográfica atravessa um aflitivo momento de instabilidade por via de uma nova proposta de Lei governamental para o sector que não só não se dispôs enfrentar cruamente os problemas reais já existentes, comummente reconhecidos, como vem trazer propostas que são perigosas para a manutenção das artes do cinema, quanto mais para o seu incremento em termos de liberdade e de interesse nacional.

Um Ministério que se envolva com a necessária seriedade numa empreitada assim, deve pugnar por saber definir as traves mestras para a atividade no âmbito de uma espectável constituição do edifício do cinema português justo e o mais amplo possível, sabendo-se, para mais, que o financiamento que movimenta o nosso cinema não advém do bolo geral do Orçamento de Estado mas, ao contrário do que alguns detratores insistem em apregoar, ele advém de taxas específicas cuja origem tem variado nos tempos, desde uma percentagem sobre a publicidade televisiva, sobre o preço dos bilhetes ou sobre a atividade das operadoras major do campo dos audiovisuais.

Da leitura do projeto que agora se preparam para debater e aprovar em Conselho de Ministros, detetam-se algumas propostas graves que em nada sossegam os profissionais do setor e que esperamos tenham sido suficientemente escalpelizadas e ultrapassadas em sede da reunião que teve lugar ontem, dia 22, entre os representantes das associações de realizadores, produtores, técnicos e atores, a que se juntaram direções de festivais de cinema, e o Governo, nas pessoas do Primeiro-Ministro e do Secretário de Estado.

Desde logo, como uma das primeiras preocupações, será necessário reequacionar o equilíbrio dinâmico e apropriado entre os naturais desígnios dos cineastas ditos já consagrados e das novas gerações com as suas expetativas e a necessidade de instrumentos para se afirmarem e se integrarem no tecido da cinematografia nacional. Assim, há que reintroduzir urgentemente as secções de concursos de Primeiras Obras que tinham sido suspensas ou eliminadas, mas agora dotadas de financiamento ajustado ao desenvolvimento atual do número de candidatos.

Há que avaliar a eficácia de funcionamento da atual estrutura do Instituto de Cinema e Audiovisuais, permitindo mais performance prática e menos carga burocrática, refletir sobre a forma da constituição dos júris dos concursos financeiros que este promove, das normas regulamentares que regem estes concursos e das tabelas e filosofias que classificam os agentes implicados nas candidaturas a esses processos de seleção que definem a distribuição das verbas de apoio à produção de filmes.

Sobretudo, há que ter a firmeza de retirar da proposta o articulado que permite que os diversificados operadores de telecomunicações e televisão se sobreponham aos profissionais e criadores que se fazem representar pelas suas associações profissionais quando falamos de processos de concursos de criação. Não é nem ético nem sequer compatível com um processo democrático que essas operadoras tenham, cada uma, o seu voto na matéria, em vez do que acontece com todos os grupos de interessados – realizadores, produtores, técnicos etc., ao contrário de terem no seu conjunto um representante a que corresponderá, naturalmente, um voto. E alertamos que tal deverá ser o único caso, em Portugal e em todo o espetro europeu, em que em concursos públicos, dinamizados por instâncias governamentais para definir distribuição de dinheiros públicos intervêm entidades privadas, para mais partes diretamente interessadas. Não se compreende tal promiscuidade, que deveria ser irregular, nem é admissível que venha a inscrever-se na estrutura final da Lei.

Neste momento delicado almejamos a vitória do bom senso e dos verdadeiros interesses da construção do cinema português e que da reunião havida com o Governo traga luz e uma nova dimensão a estes problemas, e não que venha, sem sequer resolver os já existentes, criar novos e intransponíveis entraves num tecido profissional e artístico já de si precário e tão competitivo, numa época em que cada vez menos existem alternativas para os criadores.

Imagem: O Homem da Câmara de Filmar, Dziga Vertov (1929)