Ser refugiado não é uma escolha

Ser refugiado não é uma escolha

Intervenção de Safaa Dib no V Congresso do LIVRE, a propósito do Dia Mundial pelo Refugiado

“Camaradas,

Em 1975, começou a guerra civil no Líbano, o país dos meus pais. Poucos anos depois, o meu pai, um gerente de hotel em Beirute, foi avisado para não regressar ao seu emprego no dia seguinte porque corria o risco de ser morto unicamente por causa da sua religião. E fez a única coisa possível que um pai de família poderia ter feito, fugiu. E tal como muitos libaneses, foi forçado a abandonar a sua casa, a sua terra, o seu clã, e partir, junto com a mulher e os filhos, para uma vida de incerteza, primeiro para o Dubai e depois Portugal, um país que nos anos 80 estava minado por pobreza e muitas dificuldades mas que ainda assim nos acolheu com muita curiosidade e generosidade.

Enquanto crescia, observei os meus pais a tentar a todo o custo manter viva a sua cultura entre os filhos. Eu e os meus irmãos crescemos numa casa libanesa, sempre com o pensamento de que um dia regressaríamos à nossa terra. Era impossível não me aperceber do sofrimento dos meus pais por terem abandonado o seu país e irmãos e irmãs. Mas mesmo nos momentos em que a saudade era insuportável, o facto de saberem que os seus filhos estavam seguros e tinham uma boa educação fizera com que tudo valesse a pena.

Ser um refugiado não é uma escolha porque não existe escolha possível quando se está rodeado de morte. Partir é uma decisão impelida por desespero e pelo instinto de sobrevivência, mas também sustentada pela esperança, por mais remota que seja, de uma vida melhor. Os refugiados partem para o absoluto desconhecido em busca de educação para os filhos, de uma casa segura onde não corram o risco de ser mortos num bombardeamento, de um país onde as suas filhas possam sair à rua sem o risco de serem escravizadas e violadas, de um local onde possam rezar em segurança.

Mas aqui na Europa, um continente onde se desenrolaram há 70 anos as piores atrocidades em nome de nacionalismos cegos, aprendemos a nossa lição da pior maneira, e fomos capazes de chegar a uma solução de compromisso pacífica onde não voltaríamos a assistir ao degradar dos direitos humanos, onde um homem e uma mulher não poderiam voltar a ser julgados e mortos pela sua origem, cor da sua pele ou credo religioso ou político. Instituímos a convenção de Genebra e reconhecemos legalmente a obrigação de proteger civis em tempo de guerra.

E hoje mais do que nunca, somos lembrados da necessidade de cumprir os nossos deveres enquanto cidadãos europeus ao sermos testemunhas dos novos e difíceis desafios que a Europa enfrenta. Extremismos religiosos irromperam no Médio Oriente e norte de África e ameaçam tudo. A Síria, mas também países como a Líbia, Eritreia, Sudão, Somália, Afeganistão, Iraque, Nigéria, Paquistão, tornaram-se locais de guerra e violência.

Muitos dos nacionais desses países lançam-se ao mar Mediterrâneo que se tornou uma rota de fuga para milhares e onde só no ano passado morreram mais de 3700 refugiados ao tentar fazer a travessia.

Para os que têm a sorte de chegar vivos à meta, deparam-se com a hostilidade de muitas nações europeias que têm virado as costas e alimentado sentimentos de medo, xenofobia e intolerância. O pânico que a crise de refugiados lançou na Europa é tal que levou a que fechassem um vergonhoso acordo com a Turquia de legalidade duvidosa e que dificilmente irá funcionar.

E nesta última semana, voltámos a ver o rosto feio da intolerância com o assassinato político da deputada Trabalhista Jo Cox, uma política conhecida pelo seu trabalho contra as desigualdades sociais e a favor dos refugiados. Foi um crime de ódio cometido por um homem com ligações a grupos supremacistas e neonazis e que vitimou uma pessoa que estava a tentar lutar por um mundo mais justo.

A crise dos refugiados, aquela que é já uma das maiores crises humanitárias das últimas décadas, está longe de terminar e nenhuns dos problemas estão a ser resolvidos de forma eficaz, apenas eternamente adiados. Cabe-nos a nós lutar, como europeus privilegiados que somos, por soluções para os desafios que enfrentamos.

Amanhã, 20 de junho, quando celebrarmos o dia Mundial dos Refugiados e recordarmos os que pereceram pelo caminho, lembremos também aqueles que chegaram milagrosamente vivos às nossas costas – homens, mulheres e crianças – e que desejam acima de tudo a oportunidade de construir uma nova vida em segurança. A oportunidade que os meus pais tiveram e que lhes permitiu retribuir a Portugal e aos portugueses.

Lembremos, acima de tudo, a necessidade de cumprir as nossas responsabilidades enquanto cidadãos ativos na política, sabendo que, daqui a muitos anos, seremos julgados pelo papel que desempenhámos nesta crise. E quero acreditar que será então possível responder, de consciência tranquila, que estivemos do lado certo da História.

Obrigado!”

 

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