A exigência democrática

Moção estratégica às eleições europeias

A Exigência Democrática

Congresso Fundador – Porto 2014

 

Moção estratégica do LIVRE para as eleições europeias

 

A exigência democrática

Pela primeira vez, os cidadãos europeus vão poder debater e decidir sobre a crise europeia no quadro de umas eleições europeias. Já não era sem tempo.

Não que tenham faltado eleições desde que esta crise tomou uma dimensão europeia, já há mais de quatro anos. Tivemos eleições na Grécia e na França, em Portugal e na Alemanha, na Espanha e na Itália. Praticamente cada uma dessas eleições foi seguida com atenção em toda a Europa. Praticamente cada uma dessas eleições, com a exceção reveladora da eleição alemã,
resultou na queda do governo em funções. Nenhuma dessas eleições, contudo, resolveu nada. A União Europeia esteve em risco de soçobrar no caos enquanto os líderes políticos oscilavam entre a desorientação e a complacência. Em plena quase-bancarrota grega, no início de 2010, o mundo assistia atónito ao desarranjo europeu enquanto se esperava pelo resultado de uma eleição na
Renânia do Norte-Vestefália; no ano seguinte, num passeio pela praia de Deauville, os líderes da Alemanha e da França decidem por todos os outros contra a única ferramenta que permitiria acabar de uma vez por todas com as dúvidas sobre o euro, a criação de um instrumento de dívida à escala da emissão da moeda única da União — os eurobonds — ; em 2011 ficou clara a aplicação de dois pesos e duas medidas ao caso português, com um resgate dirigido principalmente às contas públicas e contra condições draconianas, e o caso espanhol, com um resgate direto aos bancos; em 2013, numa madrugada por que ninguém tomou responsabilidade, o Conselho tomou a pior decisão possível sobre o resgate cipriota, correndo o risco de voltar a incendiar toda a zona euro.

O que nunca houve foi oportunidade para discutir esta crise europeia à escala europeia. E é essa oportunidade que devemos conquistar agora.

A crise ainda não acabou. Contra as declarações de satisfação da Comissão Europeia, o Banco Central Europeu tem vindo a sugerir que sabe que esta calma aparente está presa por fios. O mecanismo anunciado para estabilizar os juros na zona euro, ele mesmo um remendo para tapar a falta de eurobonds, estará este ano sob julgamento no Tribunal Constitucional alemão; uma sentença negativa pode novo lançar a zona euro no caos. Mais uma vez, a própria existência do euro como moeda estável, e da União como um projeto comum, está dependente de decisões parcelares que escapam ao debate e ao poder de decisão das centenas de milhões de europeus.

Pelo contrário, a crise expande-se. A irresponsabilidade das lideranças europeias fez com que ela se espalhasse de uma crise das dívidas soberanas para a mais grave crise económica e social das últimas gerações e, em muitos casos, para uma crise do estado de direito, dos direitos fundamentais e dos próprios valores democráticos. Um pouco por todo o lado os sistemas de representação democrática não dão resposta às escolhas dos cidadãos; em alguns países observa-se a ressurgência do fascismo e do nazismo, disfarçado ou às claras; noutros países há ataques diretos a minorias e regressão de direitos fundamentais; surgem líderes com tendências autoritárias que mudam constituições a seu bel-prazer ou tentam limitar o papel dos seus tribunais constitucionais. Sim: na falta de um quadro explícito de uma União de direito, parece que há tribunais constitucionais que podem decidir por toda a Europa, ao passo que outros não podem decidir sequer sobre o seu país. Os desafios democráticos que nos traz esta “crise dentro da crise” não são menores, bem pelo contrário, do que os seríssimos desafios dos anos que acabaram de passar.

Está nos livros de história: uma crise pode esconder a outra. Ao colapso financeiro e à depressão económica sucede-se a deterioração do estado de direito, o ataque aos direitos fundamentais e, finalmente, são os próprios valores democráticos que estão em perigo. Esta regressão está já em curso na Europa — está é só, como tantas outras coisas, mal distribuída. Da Grécia à Hungria a crise pode ter sintomas diferentes, mas uma etiologia comum: quando os cidadãos sentem que o poder, naquilo em que mais conta para as suas vidas, já escapa às ferramentas da democracia, a tentação demagógica cresce, os governos tornam-se autoritários, o fascismo mostra as suas garras. O poder económico revela-se de diferentes formas, seja pelos vínculos entre o sistema bancário-sombra e a fuga de capitais, seja pelo nexo entre corrupção e crime organizado; mas também aqui, da Bulgária à Irlanda, há milhares de pessoas que fazem da sua vida uma exigência ética e democrática ou indivíduos determinados que expõem como grandes empresas subtraem à comunidade os recursos de que ela precisaria para manter e expandir os direitos sociais que demoraram gerações a conquistar. Do Reino Unido à Itália, o poder de influência das grandes fortunas compra jornais, escândalos, e mais fortunas; impõe a sua agenda e tem um peso desproporcionado sobre as escolhas dos cidadãos; recuperar a democracia sob os escombros da sua vulgarização será um esforço moroso, cheio de dificuldades, às vezes cheio de equívocos também. De Portugal à Finlândia ou da Espanha à Alemanha, contudo, a Europa não está unida a não ser pelas suas divisões: há uma nova cortina de ferro que separa os sofredores dos indiferentes, os que são forçados a emigrar dos seus países dos que recebem os profissionais mais bem formados dos países da crise, a cintura dos endividados da cintura dos excedentários. Aí está o pior perigo: o de um fosso tão alargado que, a partir de certo momento, resulta em realidades inconciliáveis, na impossibilidade de argumentar, e portanto de criar as condições para um movimento democrático e progressista que nos reconquiste as possibilidades de futuro. Acreditamos que aos países da crise compete a responsabilidade particular de, por verem o abismo de mais perto, ganhar a clareza de discurso e persuasão que permita convencer os outros europeus e inverter o curso destas políticas.

Perante este cenário, só uma tomada de consciência forte por parte dos 500 milhões de cidadãos europeus poderá evitar uma catástrofe. No centenário da Iª Guerra Mundial, estas eleições europeias permitir-nos-ão relembrar como a combinação do desinteresse dos cidadãos e da irresponsabilidade dos líderes pode levar à catástrofe. Só uma exigência democrática permitirá deixar bem claro que 2014 não será como 1914.

Infelizmente, há muitos interesses apostados em que os cidadãos percam esta oportunidade de decidir pelo seu futuro. Não nos enganemos; o poder bancário e financeiro que nos levou a esta crise não deseja um Parlamento que use os seus poderes de emendar legislação para regular fortemente este setor; o poder nos grandes países, a começar pela Alemanha, já declarou que não vê relação entre o voto dos europeus e a escolha do executivo da União; e, um pouco por todos os países, os partidos nacionais querem continuar a jogar no tabuleiro a que estão habituados, que é o da política nacional. Vendem-se ilusões e contrabandeiam-se estereótipos, na esperança de que o povo vá atrás de quem for mais reacionário.

A Europa não é só uma coleção de países. Na União Europeia vivem 500 milhões de pessoas, diversas mas — como em qualquer comunidade — partilhando e opondo-se por valores, por ideologias, por anseios. Em todo este continente, como em todo o mundo, a história produziu a duras penas uma exigência comum: de democracia, de dar poder aos cidadãos, de expandir para a ação a política a soberania pessoal, aquém e além das fronteiras nacionais. E entre os democratas, como em qualquer comunidade de democratas, há progressistas e conservadores, libertários e autoritários, ecológicos e depredadores. A Europa viveu, como todo o Norte ocidental nas últimas décadas, um período de domínio conservador. Urge o tempo de acabar com ele e começar a construir uma fase nova, de progresso, expansão da democracia e desenvolvimento sustentável.

O LIVRE recusa a facilidade e a demagogia reinantes no debate europeu. A exigência democrática de que nos reclamamos é em primeiro lugar uma exigência sobre nós mesmos, um grito de alarme para os cidadãos, e a necessidade de ter um plano claro para o futuro da União Europeia, dos seus estados e dos cidadãos.

 

Uma exigência portuguesa

Os partidos portugueses estão em alvoroço: fala-se de nomes para as europeias, da listas para as europeias, da campanha para as europeias e do resultado das europeias. Tudo — menos de Portugal e da Europa. Os partidos existentes não disseram até hoje uma palavra sobre o programa legislativo que desejam levar para o Parlamento Europeu, da ação executiva que querem ver levada a cabo na Comissão Europeia, das propostas para o futuro da União caso seja convocada uma convenção para alteração dos tratados. É portanto de prever que o alvoroço partidário termine na noite eleitoral do próximo dia 25 de maio.

No LIVRE opomo-nos diametralmente a este estado de coisa. Consideramos que é precisamente esta cultura partidária que tem feito de Portugal a vítima de políticas europeias mal deliberadas e democraticamente ilegítimas, uma das primeiras cobaias da troika, o aluno que mais se esforçou em aplicar a austeridade.

Fazemos uma constatação simples: o Parlamento Europeu vai, no decurso do quinquénio 2014-2019, ser o parlamento do mundo perante o mais complexo trabalho legislativo do mundo. Pela clara razão de que está tudo por fazer. Nem o Congresso Americano, nem o Congresso Brasileiro, o da União Indiana ou o quem quer que seja que tome as decisões na China terão o mesmo conjunto de desafios. Na União Europeia não há ainda união bancária, estamos a meio da decisão legal sobre proteção de dados para 500 milhões de cidadãos na era pós-Snowden; a União terá pela primeira vez um procurador-geral e aquilo a que poderíamos chamar a sua primeira tipologia de “crime federal” — a fraude ao orçamento da União. É bom de ver que tudo isto pode ser bem feito — ou muito mal feito. Não é indiferente para nós, 500 milhões de europeus, saber se os legisladores que iremos eleger serão de esquerda ou de direita, se estarão pelos direitos fundamentais ou pela vigilância, se defenderão os interesses da indústria ou a preservação do ambiente.

E, em particular, não nos é indiferente a nós, mais de dez milhões de portugueses, saber que 21 deputados vamos eleger para o Parlamento Europeu. Os deputados portugueses não chegarão sequer para preencher cabalmente todas as comissões e delegações parlamentares, cada uma delas uma máquina de produção legislativa por onde passam setores inteiros da economia, dos direitos dos cidadãos, do ambiente ou das relações com o resto do mundo. É mais do que um pouco frustrante ver que, nos últimos tempos, só se fala de “eleições europeias” mas que nunca se fala do que mais importa. Analistas políticos e diretórios partidárias estão obcecados com as eleições europeias — mas num horizonte muito curto: interessa-lhes apenas saber o que vai acontecer e que números vão ter nos ecrãs na noite de domingo, 25 de maio de 2014. A partir daí e durante cinco anos os cidadãos estarão uma vez mais entregues à sua sorte, vendo escapar ao seu controle tudo o que acontece a partir das capitais europeias.

Três simples exemplos.

Os deputados recém-chegados ao Parlamento Europeu terão de decidir, presumivelmente já no próximo mês de outubro, sobre o Acordo de Comércio Transatlântico, estabelecendo a maior área de comércio livre do mundo, entre a União Europeia e os Estados Unidos da América, deixando muito longe o Produto Interno Bruto dos países emergentes. É o Parlamento Europeu que terá a
última palavra sobre este acordo — um privilégio que a Câmara dos Representantes dos EUA não tem. Esta é uma decisão cujo impacto é global e epocal. As negociações passam-se à porta fechada, com base num mandato secreto. As consequências possíveis são inquietantes para os cidadãos: a fixação desreguladora dos negociadores europeus e norte-americanos vai certamente atingir todos os aspectos da nossa vida económica, ambiental e laboral; os mercados de prestação de serviços seriam certamente integrados, as bitolas de proteção ambiental arriscam-se a ser rebaixadas, os produtores agrícolas ver-se-iam a prazo a braços com competição acrescida, os consumidores perante produtos cujos critérios de segurança alimentar ou industrial conhecem mal ou desconhecem de todo. Portugal, uma vez mais, poderá estar perante uma mudança estrutural dos mercados onde se insere — mudança essa que será tão grande ou maior que a do alargamento a Leste ou a da entrada da China na Organização Mundial do Comércio. Tal como nessas ocasiões, os portugueses arriscam-se a que a grande mudança se dê sem nenhum debate sobre a adaptação do seu modelo de desenvolvimento. De que forma tencionam os partidos políticos enquadrar esse debate e sob que programa se apresentarão a essa decisão, já ao virar da esquina? Silêncio. Mais uma vez, também esse acordo será negociado sem ter em conta as necessidades de desenvolvimento e de ligação com o resto do mundo, da África à América Latina, do Mediterrâneo ao Médio Oriente. Que têm a dizer os partidos portugueses, tão alvoroçados perante o aproximar das eleições, sobre os critérios em que basearão a sua votação? Nada.

Mas há mais. Está à vista de todos que os bloqueios atuais da União Europeia têm raízes nas insuficiências dos atuais tratados emendados por Lisboa, do mandato do Banco Central Europeu, dos defeitos estruturais da arquitetura da União Económica e Monetária e da moeda única, o euro. Os portugueses conhecem na pele que estas não são questões abstratas: por causa delas soçobrámos na atual crise, por culpa delas a recuperação foi impossibilitada e a troika imposta. Que nenhuma dessas questões pode ser cabalmente resolvida no quadro atual é evidente. A consequência seguinte está na mente de muitos governantes e eurocratas, mas não tem sido trazida a público: chama-se mudança dos tratados. Já a partir de 2015, os próximos deputados europeus podem vir a ser chamados a uma Convenção Europeia para reformar os tratados. Essa é uma probabilidade bem real mas, mais uma vez, que nos dizem os partidos portugueses sobre quais são as suas ideias para a reforma dos tratados? Quem preferem ter os portugueses como representantes na Convenção Europeia? Aqueles que têm ideias sobre como mudar os tratados, e cujas ideias são de reforma democrática e social das instituições, ou aqueles que chegado o momento farão o que disser a direção partidária e enveredarão pela gestão política habitual da sua carreira política, indiferentes às decisões históricas que terão na ponta dos dedos?

E, finalmente, peguemos na decisão mais próxima. Ela já está em curso. Estas eleições europeias podem não ser como nenhumas outras. Elas podem oferecer aos cidadãos europeus a possibilidade de escolher o Presidente da próxima Comissão Europeia, e de assim legitimar um programa a implementar pelo executivo da União, e de o levar a responder diretamente perante o Parlamento Europeu. Esta conquista não está ainda garantida — precisa da mobilização de todos nós — mas a possibilidade não ocorreu por acaso. Ela deu-se porque houve parlamentares europeus que lutaram arduamente para que houvesse escolha, para que ela fosse democrática, para que houvesse programas em alternativa, e para que a campanha fosse pan-europeia. Fizeram-no muitas vezes sob a incompreensão ou até o boicote de vistas curtas de muitas forças políticas europeias. Mas esta escolha está aí, e dá-nos uma oportunidade: é agora a hora de decidir por uma União progressista ou conservadora, pró-austeridade ou anti-austeridade, democrática ou tecnocrática.

Que têm os partidos portugueses a propor sobre esta escolha? O LIVRE quer dar a resposta.

 

Uma exigência progressista

A crise firmou uma mundança fundamental de escala política na nossa época. O campo de batalha deixou de ser o nacional e passou a ser o continental. No nosso programa político referimo-nos a essa mudança nos seguintes termos:

«É já de uma importância histórica a grande mudança ocorrida na Europa dos últimos anos, e isso sem ainda a termos apreendido em toda a sua dimensão. O que ocorreu, em termos simples, é que o campo de batalha mudou. A escala dele é agora continental. Nenhum dos grandes desafios que se coloca a esta geração conseguirá ser enfrentado a uma escala nacional: nem obviamente a crise do euro, nem as questões da união bancária, nem a proteção de dados pessoais, nem a regulação dos serviços financeiros, nem as questões da evasão fiscal e do planeamento fiscal agressivo, nem os desafios da globalização e da emergência dos países em desenvolvimento, nem as violações de direitos fundamentais e a erosão dos valores democráticos e do estado de direito em muitos países da Europa — nada disto poderá ser encarado sem uma perspetiva europeia. Pelo contrário, é à escala europeia que temos já hoje alguma hipótese de regular mercados, como o das farmacêuticas, dos serviços na internet ou das construtoras de automóveis.

Quem já o percebeu, evidentemente, foi o grande poder económico. Bruxelas é hoje a segunda capital do lobbying no mundo, depois de Washington. E não tardará a tornar-se na primeira: uma linha numa diretiva europeia define as regras de jogo para um mercado de 500 milhões de consumidores, o mais afluente e populoso do mundo em simultâneo, e faz ou desfaz lucros de milhares de milhões de euros. Uma alteração num regulamento comunitário pode criar exigências de segurança alimentar, direitos do consumidor ou respeito pelo ambiente que, pela força do mercado europeu, se impõe a empresas de todo o mundo. Essa força deve ser utilizada a favor dos cidadãos europeus, dos consumidores de todo o mundo e da responsabilidade perante o planeta. É tempo de criar os mecanismos para que o poder na União Europeia seja exercido, não pelos grandes interesses, mas pelos cidadãos e os seus estados.

A nossa política, porém, continua nacional. Há quem acredite, ou pretenda fazer acreditar, que a solução está em fecharmo-nos para os nossos limites. Mas essa retração não nos livrará da especulação financeira, nem das práticas dos grandes cartéis, nem das realidades da produção e do consumo à escala global. Uma democracia impotente não dá soberania aos seus cidadãos.

É preciso ampliar a democracia até onde está o poder. Desde o momento em que a União Europeia se dotou de ferramentas monetárias, regulatórias e económicas; a partir do momento em que ela é um espaço de liberdade de circulação, segurança e justiça; tendo em conta que a União tem Tribunal de Justiça e passará em breve a ter Procuradoria ou uma agência policial comunitarizada; considerando que passou a dispor recentemente de uma base legal de valores de estado de direito e direitos fundamentais, considerando que dispõe de personalidade jurídica para assinar tratados internacionais em seu nome; ou ainda tendo em conta de que com a adesão à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, os atos institucionais da União passarão a ser externamente apreciados pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, é necessário e urgente dar o único passo que permitirá compensar tudo isto sem ter de desfazer a União — construir uma Democracia Europeia.»

A Democracia Europeia é pois a exigência natural por parte de uma cidadania ampla e ativa num continente onde pela primeira vez se firmou a exigência de um estado social de direito e de um alto nível de desenvolvimento económico, social e ambiental. A Democracia Europeia é também, crucialmente, a forma de superar a dicotomia entre federalismo e soberanismo. As exigências do federalismo e do soberanismo, ao contrário do que se supõe, não são antitéticas — se ambas repousarem na exigência da democracia como extensão da soberania pessoal. Se em determinados aspectos o ideal da Democracia Europeia se constrói a partir de uma cidadania e soberania à escala europeia — aquela que nós exigimos quando pretendemos eleger por via parlamentar o executivo da União — noutros aspectos a Democracia Europeia corresponde a uma renacionalização dos debates europeus. É isto que se passa quando exigimos, como passo intermédio para a construção de um Senado europeu, a eleição dos representantes nacionais no Conselho da União Europeia, hoje embaixadores designados pelos governos e encarregados de desempenhar funções legislativas que, em democracias, devem ser prerrogativa de representantes eleitos para tal. Como vemos, Democracia Europeia significa reforçar as nossas duas vozes, como cidadãos nacionais e como cidadãos europeus. Ela permite reforçar o poder dos cidadãos na União e nos seus estados-membros.

É preciso, porém, ser muito fidedigno acerca das possibilidades e limites de uma Democracia Europeia.

Uma Democracia Europeia não resolve por si só os problemas que enfrentam hoje em dia os europeus, e em particular os dos países da linha da frente na crise, seja na crise económica e social, principalmente nos países da periferia e do Sul, ou na crise do estado de direito e dos direitos fundamentais, nomeadamente em alguns países do Leste europeu. Uma Democracia Europeia não resolve também por si só os problemas das gerações de jovens a quem se promete um estado social cada vez mais restrito, não resolve por si só as questões da precariedade, não resolve por si só as questões da crise ambiental ou das alterações climáticas. Uma Democracia Europeia não resolve por si só estas questões. Permite apenas que possamos começar a resolvê-las.

Concomitante com a conquista deste espaço democrático continental é a construção de um movimento progressista que, esse sim, através da consolidação de uma base social de apoio plural — uma maioria de minorias, se necessário for — e da mobilização dos instrumentos democráticos necessários para levar a cabo o seu programa de transformação. Precisamos de reproduzir na União aquilo que conseguimos já fazer nos nossos países, e aquilo que nas Américas ou na Ásia já foi conseguido em regiões de escala equivalente. Esta é a lição do progressismo na América do Norte, no início do século XX, que primeiro democratizou a eleição de senadores ou inovou com a instituição do referendo ou de outros mecanismos de democracia direta, antes de passar ao combate aos monopólios e cartéis (“trust-busting”) e, após a Grande Depressão, à construção do New Deal com a criação de uma Segurança Social e a realização de grandes planos de emprego na área agrícola, infra-estrutural, ambiental e cultural. Um exemplo semelhante é o que se deu durante mais de duas décadas no Brasil: foi após a conquista da democracia — com a campanha “Diretas Já!” — que o Partido dos Trabalhadores, os movimentos sociais e a esquerda brasileira em geral puderam começar a construir a sua freme progressista, comunidade a comunidade, cidade a cidade, profissão a profissão, região a região. Também aqui a maioria progressista foi construída a partir de muitas minorias sem poder: os trabalhadores industriais de São Paulo, os agricultores do Sul, os estudantes e intelectuais das grande metrópoles, as populações pobres do Nordeste. Demorou mais de vinte anos, mas redundou na conquista de novos direitos sociais, na diminuição da miséria e na construção de um país empenhado em conquistar futuro para os seus cidadãos.

É a mesma lição que devemos voltar a aplicar na Europa: objetivos mobilizadores para criação de movimentos progressistas; criação de movimentos progressistas para estabelecimento de maiorias sociais e políticas; estabelecimento de maioria para conquistar direitos e, acima de tudo, implementá-los. Essas maiorias terão de ser compostas por cidadãos do Sul e do Norte, trabalhadores e estudantes, minorias e maiorias historicamente discriminadas, profissionais das metrópoles e gerações jovens qualificadas, e tantas outras categorias que não sabemos sequer categorizar. Não é encerrados no nosso canto que derrotaremos o neoliberalismo e a austeridade na União.

É nesse movimento que o LIVRE se quer integrar, em Portugal como na Europa, com toda a criatividade, generosidade e coragem que nos forem possíveis.

E a boa notícia: está menos longe do que parece.

Nos últimos anos três grandes famílias políticas europeias protagonizaram em graus diferentes, cada uma com as suas dificuldades e imperfeições, a oposição a uma União Europeia austeritária e a-democrática. São elas as do Partido da Esquerda Europeia, do Partido dos Socialistas Europeus e do Partido Verde Europeu, cada uma liderando um grupo no Parlamento Europeu. Essas três famílias política apresentaram candidatos à Presidência da Comissão Europeia: Alexis Tsipras foi o escolhido pelo Partido da Esquerda Europeia e Martin Schulz pelo Partido dos Socialistas Europeus; após um processo de primárias, os candidatos dos Verdes Europeus são José Bové e Ska Keller.

Da mesma forma que em Portugal a catástrofe anunciada seria um governo dominado ou com a participação do PSD e CDS, na União Europeia a catástrofe anunciada tem por emblema a continuação do Partido Popular Europeu, de direita, à frente dos destino da maioria das instituições europeias. Também o Aliança dos Liberais e Democratas escolheu o seu candidato, Guy Verhofstadt — que em tempos defendeu a emissão de eurobonds como forma de ultrapassar a crise —, mas apenas após um acordo negociado com o comissário Olli Rehn, maior representante do austeristarismo na Comissão Europeia. Este acordo não só foi avesso a uma escolha democrática como enfatizou a grande ambiguidade dos liberais europeus: em questões de costumes e direitos fundamentais votando com os grupos à sua esquerda; em todas as questões relativas à economia e às finanças tomando posições ainda mais radicais do que a direita do PPE. Ficam por agora fora desta análise os Conservadores, principalmente britânicos e polacos, e os eurocéticos e partidos de extrema-direita que não apresentaram candidatos à Comissão e propositadamente se colocam fora do debate europeu. A catástrofe europeia seria a continuação de uma aliança entre o conservadorismo do PPE e o austeritarismo de setores neoliberais como os de Olli Rehn.

Pelo contrário, o que é preciso obter na União Europeia é uma maioria progressista, e para o conseguir é preciso apoiar em conjunto as famílias políticas por uma União social e antiausteritária.

Nenhum partido europeu, nenhum grupo parlamentar e nenhum candidato à Presidência da Comissão Europeia é perfeito. Nem poderia ser. Todos os candidatos progressistas têm, é claro, virtudes — e valores que compartilhamos. Bové e Keller passaram por um processo de escolha democrática que venceram não só pelo excelente trabalho que realizaram como deputados europeus — nas áreas da agricultura e ambiente o primeiro, nas áreas das Liberdades e da imigração a outra — mas acima de tudo pelo empenho crítico que puseram na luta contra a austeridade, ambos enquanto representantes da ala esquerda dos Verdes Europeus — e, no caso de Ska Keller, enquanto cofundadora do LEFT caucus, o fórum progressista no Parlamento Europeu. Martin Schulz tem sido um presidente do Parlamento Europeu combativo, vigoroso e especialmente crítico dos caminhos que a União tem tomado. Alexis Tsipras tem sido o símbolo, no país onde a crise começou primeiro e cavou mais fundo, de uma crítica radical da União que pode não ser contra a União mas a favor dela.

Para apoiar especificamente um destes candidatos, o LIVRE teria de passar por um processo de deliberação, reflexão e escolha, culminando numa consulta aos membros e militantes. No quadro desta moção, no entanto, o que importa é apoiar os esforços para que deste ato eleitoral saia uma Comissão Europeia, com um programa de democratização da União e um plano anti-austeridade de recuperação económica, em particular dos países mais afetados pela crise, apoiada no essencial pelas três famílias da esquerda europeia. O LIVRE compromete-se, portanto, a apoiar os esforços de cooperação entre todos os partidos e cidadãos com um programa progressista para a União. De entre os candidatos da famílias políticas da esquerda, aquele que tiver mais possibilidades de conseguir uma maioria no Parlamento Europeu para presidir à Comissão Europeia — seja Bové, Keller, Schulz ou Tsipras — contará com o apoio autónomo e desinteressado do LIVRE. Se for eleito um Presidente da Comissão Europeia oriundo das famílias políticas do centro ou da direita, este contará com a nossa oposição democrática, mas não com o nosso apoio. As nossa prioridades vão para o apoio aos candidatos da esquerda e à criação de uma frente progressista para mudar a política na Europa.

O LIVRE fará parte das próximas escolhas europeias, quer participe ou não nas eleições. Enquanto cidadãos, daremos o máximo para que estas eleições tenham consequências. Para que discutam os temas fundamentais do nosso futuro. Para que os candidatos a deputados sejam desafiados a pormenorizar ao máximo os programas legislativos para os difíceis cinco anos que se seguirão. Para que a eleição permita escolher um Presidente da Comissão Europeia, um programa de mudança e dar passos decisivos na criação de uma Democracia Europeia.

 

Uma exigência de convergência

Em Portugal, as eleições europeias ocorrem após três anos de troika e governo de direita. A direita vai junta às eleições europeias. A esquerda vai, como de costume, dividida.

Uma sondagem recente deu à coligação da direita o primeiro lugar nas eleições europeias.

É preciso refletir seriamente no que significaria uma tal vitória da direita. Noutro momento seria talvez simplesmente uma eleição normal entre as curvas e contra-curvas da democracia. Mas após estes três anos, com este governo, com esta troika, depois de toda a mobilização, das manifestações, petições e congressos, comícios na Aula Magna e condenação geral da esquerda e até de muito centro e direita às políticas anti-sociais deste governo, uma vitória das forças que o apoiam constituiria um momento de profunda desmoralização para toda os cidadãos que se revêem na oposição a estas políticas. Esta possível vitória, num quadro de desentendimento e sectarismo das esquerda, constituirá um profundo fracasso da resposta à esquerda a este governo. Pior do que isso, constituirá um abandono do povo que sofreu amargamente estes anos de ataques aos seus direitos.

O LIVRE afirmou desde o início que as eleições europeias tinham um valor intrínseco — pela discussão do programa legislativo europeu para o quinquénio 2015-2019 — e um valor essencial para Portugal — como primeiro passo para uma governação progressista a partir de 2015.

O LIVRE valoriza as tentativas de convergências recentes entre forças da esquerda, e mais uma vez reitera que não se constituiu nem constituirá como obstáculo delas. Antes pelo contrário: importa-nos assinalar que a convergência foi tentada, e não tanto participar num jogo de culpas de porque não foi ela (por agora) bem sucedida.

Acreditamos que é necessário revalidar o apelo à convergência, e ser até mais ambicioso para ele. É preciso dizer que a esquerda poderia ir junta a estas eleições europeias — uma vez que a direita, com diferenças de política europeia talvez igualmente profundas, também o faz. É preciso reafirmar que o quadro legal e regimental do Parlamento Europeu facilita essa escolha, ao permitir que deputados eleitos por listas conjuntas possam integrar os seus grupos parlamentares respetivos. É preciso lembrar que este mecanismo é usado em diversos países europeus, a começar pela vizinha Espanha. Apelamos de novo aos partidos da esquerda parlamentar portuguesa — PCP, na sua aliança com o PEV; BE; e PS — para que entendam que é preciso mudar de atitude e quebrar com o tabu atávico da falta de convergência entre eles para que a política portuguesa mude e finalmente dê esperança aos cidadãos.

O LIVRE tem tomado a palavra no espaço público para insistir nestes temas. Consideramo-nos parte de um grito de impaciência e até revolta por parte dos cidadãos que esperaram e desesperaram por novidade, por coragem e decisão.

Ao mesmo tempo, o LIVRE tem dado os passos necessários para participar eleitoralmente, de forma assumida e descomplexada, neste processo eleitoral e em todos os que se seguirem. Fa-lo-à dando uso aos novos mecanismos de participação democrática que proporcionará aos cidadãos portugueses. É com essa responsabilidade que concluiremos a presente moção.

 

A nossa exigência

O LIVRE participará nas próximas eleições europeias — a título individual ou em convergência, com presença eleitoral ou simplesmente alimentando o debate público sobre questões europeias.

Essa participação será um momento de grande exigência para um partido que acabou de nascer.

No quadro do Congresso Fundador e da eleição dos órgãos democráticos do partido, e em partido enquanto plataforma de trabalho da lista candidata ao Grupo de Contacto, os membros e apoiantes reunidos no órgão máximo do LIVRE tomam as seguintes resoluções, de que encarregam os órgãos eleitos:

1. Realizar um programa legislativo para as eleições europeias, no prazo máximo de um mês. Este programa deve ser amplo, detalhado e justificado, explicitando de forma pedagógica aquilo que pode ser realizado no quadro legal atual, aquilo que necessita de mudanças dos tratados, e aquilo que depende de uma mobilização cidadã consciente em Portugal e na Europa. Esse programa deve ter medidas exemplificativas nas diversas áreas de competência da União e de trabalho das comissões parlamentares europeias. Tal programa político constituirá, junto com a presente moção e outros documentos específicos para o ato eleitoral ao Parlamento Europeu, o quadro de referência para a realização do processo de seleção de candidatos do LIVRE. O Grupo de Contacto eleito ficará encarregado dos trabalhos de redação e apresentará o resultado à Assembleia para aprovação desta.

2. Estabelecer um quadro regimental para o processo de primárias abertas, incluindo a publicação de calendários, regulamentos, compromissos de ética e códigos de conduta. Apresentar essa documentação à Iª Assembleia, a realizar de preferência ainda durante o mês de Fevereiro. Após aprovação da Assembleia, dar-se-á início ao processo de primárias abertas, o primeiro alguma vez realizado em Portugal.

3. Em simultâneo, estar preparado para a consulta democrática aos membros e apoiantes em qualquer processo de convergência para que o LIVRE seja convocado, incluindo a realização de uma Assembleia extraordinária ou até, em caso justificado, a realização de um referendo interno aos membros e apoiantes do LIVRE para tomada de decisão sobre propostas relevantes e acionáveis de convergência eleitoral. De especial relevância é o facto de que nenhum processo de convergência isentará o LIVRE da realização de primárias abertas para os seus lugares correspondentes em listas eleitorais.

4. Preparar um plano de informação e mobilização em torno das primárias abertas que leve o debate sobre temas europeus e as suas implicações nos temas nacionais, bem como nos temas globais, a todo o país e se possível à diáspora, na medida das possibilidades do LIVRE. Esse plano deverá ser preparado pelo Grupo de Contacto, com colaboração com os Grupos de Trabalho da Assembleia, e será aprovado pela Assembleia. Esse plano de contacto deverá conter obrigatoriamente provisões para debate e reflexão com cidadãos e movimentos exteriores ao LIVRE.

5. Por último, e na dependência da decisão do Tribunal Constitucional sobre a legalização do LIVRE, preparar um plano de campanha eleitoral para as eleições europeias, ou de acompanhamento do processo eleitoral com realização de uma “campanha cívica” sobre questões europeias, portuguesas no quadro europeu, e europeias no quadro global. Esse plano de campanha deve ter em conta os desideratos do LIVRE como partido que pretende contribuir para melhorar a qualidade do debate público na política portuguesa e europeia.

 

O LIVRE é um partido recente, de certa forma artesanal, não-beligerante, idealista e generoso. Um dos seus pilares é a construção de uma Democracia Europeia que permita não só superar a presente crise como relançar o projeto progressista nas escalas nacional, continental e global. Somos um partido pequeno para grandes ideias. Não devemos temer nem a nossa pequenez nem a grandeza das ideias que defendemos. Ambas fazem parte do mesmo sentimento de exigência: exigência perante a política, exigência perante a cidadania, exigência perante o momento histórico em que vivemos mas. sobretudo, exigência perante nós mesmos.

É essa exigência que esta moção pede aos congressistas para o próprio LIVRE, os seus órgãos eleitos, os seus membros e apoiantes, e todos aqueles que comunguem dos nossos valores, princípios e ideais.

 

Juntos, vamos fazer de 2014 o ano da viragem progressista na Europa, e a preparação de uma viragem progressista para Portugal.

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