Foi noticiado o facto de, no passado dia 11 de outubro de 2017, o Tribunal da Relação do Porto ter proferido Acórdão num caso de violência doméstica no qual constam as seguintes passagens sobre a assistente (queixosa), mulher:
“Ora, o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem.
Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte.
Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte.
Ainda não há muito tempo que a lei penal (Código Penal de 1886, artigo 372º) punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando sua mulher em adultério, nesse acto a matasse.
Com estas referências pretende-se, apenas, acentuar que o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher.
Foi a deslealdade e a imoralidade sexual da assistente que fez o arguido X cair em profunda depressão e foi nesse estado depressivo e toldado pela revolta que praticou o acto de agressão, como bem se considerou na sentença recorrida.
Por isso, pela acentuada diminuição da culpa e pelo arrependimento genuíno, podia ter sido ponderada uma atenuação especial da pena para o arguido X.”
A leitura desta passagem suscita preocupações com a utilização, por um tribunal, de considerações machistas e preconceituosas quanto ao papel na mulher da sociedade como argumento numa decisão judiciária.
A situação divulgada nestes últimos dias não é, aliás, nova. O LIVRE relembra a este propósito que, no passado dia 25 de julho de 2017, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), instituição de referência no que à proteção dos direitos humanos diz respeito, condenou Portugal, no caso Carvalho Pinto de Sousa Morais, por causa da existência, na decisão judicial contestada e proferida pelo Supremo Tribunal Administrativo, de estereótipos relativamente ao papel da mulher na sociedade. Nesse acórdão, o TEDH teve em atenção um estudo intitulado “Violência doméstica: Estudo avaliativo das decisões judiciais” (de novembro de 2016), promovido pela Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género e levado a cabo pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra onde foi manifestada preocupação sobre o sexismo prevalecente na forma como as autoridades judiciárias tratam os casos de violência doméstica. Para o TEDH, as considerações feitas pelo STA confirmavam as preocupações desse estudo (ver a este propósito, parágrafos 29 e 54 do acórdão do TEDH, http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-175659). Neste contexto, é ainda mais surpreendente ler um acórdão como o do TRP, com preconceitos bem visíveis quanto ao papel da mulher na sociedade, passados poucos meses da publicação do acórdão do TEDH.
Existe ainda um longo caminho para alcançar a igualdade de género, sendo muitas as frentes onde a luta pela igualdade tem de ser combatida. Mas os preconceitos e os estereótipos, que inevitavelmente levam à discriminação da mulher, não devem ter origem nos tribunais, sendo preocupante que considerações deste género venham de juízes que devem aplicar o direito sem discriminar.
No parágrafo nº1 do artigo 12º da Convenção de Istambul lê-se que os Estados “deverão adotar as medidas necessárias para promover mudanças nos padrões de comportamentos socioculturais das mulheres e dos homens, tendo em vista a erradicação de preconceitos, costumes, tradições e de outras práticas assentes na ideia de inferioridade das mulheres ou nos papéis estereotipados das mulheres e dos homens.” Os Tribunais também devem desempenhar o seu papel neste âmbito.