Lembro-me de ser muito pequeno (seis anos? oito?) e de, num passeio que dava sozinho, me ter deparado com uma cena assustadora: um homem gritava e espancava brutalmente um pequeno burro. Quando me aproximei, percebi que a carroça que o burro puxava tinha uma roda presa num valado, e o pobre animal não tinha obviamente forças para a tirar de lá. Aterrado, mesmo assim encontrei forças para procurar uma trave forte e interpelar nervosamente o homem, mostrando-lhe que se aplicasse uma alavanca ao eixo da carroça facilitaria o trabalho do animal.
Decorrem deste episódio duas consequências. A imediata foi que um homem violento e enraivecido seguiu o conselho de uma criança e o burro lá continuou, coxeando, o seu caminho; a secundária foi esta minha inclinação para procurar as verdadeiras causas dos problemas e a forma mais eficiente de os resolver.
Por ter esta tendência, acabo por ligar factos que às vezes parecem isolados. Quando vejo, por exemplo, as notícias sobre o galgamento do mar na costa portuguesa e o desaparecimento das praias, acredito que isso tenha relação com o aquecimento global, por um lado, e por outro com as barragens que cortam todos os nossos rios principais e impedem o natural reabastecimento da areia ao litoral. E a propósito das barragens, acrescente-se o seu impacto negativo direto sobre a biodiversidade, ao impedirem as migrações dos peixes e inundarem galerias ripícolas, reduzindo o habitat de espécies ameaçadas. Ouço as notícias sobre os fogos florestais e não posso deixar de os associar ao modelo de gestão silvícola que tem sido aplicado, que promove monoculturas de elevada densidade e extensão[1]. Desgosta-me aqui em São Miguel ver a espuma acumulada nas margens da Lagoa das Furnas, cujo espelho de água é tantas vezes dominado por uma repulsiva massa de algas verdes, mas sei que isso tem relação com o regime intensivo de adubagem das pastagens que forram a respetiva bacia hidrográfica.
Ora pode recuar-se mais um passo e perguntar o que é que tudo isto tem em comum. Alguma coisa liga a construção contínua de barragens, as monoculturas florestais e a agricultura intensiva? E também aqui a resposta me parece óbvia: o denominador comum é um determinado modelo de desenvolvimento que coloca as pessoas contra o ambiente, que explora recursos que são de todos em benefício apenas de alguns, sobrecarregando os restantes com as externalidades negativas.
Poderia ser de outra maneira. E há muitas pessoas que sabem que poderíamos ter outro desenvolvimento, que poderíamos dar prioridade à qualidade sobre a quantidade, ao local sobre o descaracterizado, que não é fatal que estejam ameaçadas em Portugal 21 espécies de peixes. Contudo, o capítulo sobre Biodiversidade da Avaliação para Portugal do Millennium Ecosystem Assessment, depois de pintar um quadro muito negro da situação atual da conservação das espécies e dos habitats, diz textualmente que, de entre as respetivas forças motrizes indiretas, se salientam “a situação de Portugal como membro da União Europeia e a influência das políticas e directivas comunitárias tanto a nível ambiental como a nível económico e social. Também relevantes são os efeitos da política agrícola comum, do intenso crescimento populacional urbano e da conjuntura económica do país.”
E por mais que sejamos bombardeados com sugestões de que o problema é de cada um dos portugueses, que somos culpados por usar muita água quando lavamos os dentes, ou por abrir muitas vezes a porta do frigorífico, ou por não levarmos sacos reutilizáveis para o supermercado, é para mim claro que o problema está mais acima. Está nas nossas instituições, naturalmente, nas autarquias, está no governo. Mas está sobretudo na Europa, de onde nos vem o rio de dinheiro que transformou o nosso país na última geração, mas de onde vêm também orientações muito precisas sobre como o gastar. Foi Bruxelas que financiou a barragem do Alqueva, foi dos fundos comunitários que veio o dinheiro para as autoestradas agora vazias mas que retalharam a continuidade ecológica de tantas regiões.
O reconhecimento dos males da Europa não faz de mim, contudo um eurocético. E isto não é um contrassenso! É que é possível subir um degrau ainda: o degrau que nos leva ao nível global, à escala planetária. E aí forças mais poderosas imperam: as forças dos grandes capitais financeiros, de poderosas multinacionais, escudadas atrás de acordos de que pouco se fala mas que moldam tudo isto, como o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) ou a agora em discussão Parceria Transatlântica para o Comércio e o Investimento (TTIP). Foi em nome dos princípios da primazia do lucro à escala global que a nossa agricultura e a nossa indústria e a nossa pesca foram desmanteladas. É em nome da força bruta da desregulação financeira que está a ser imposta a presente situação ao nosso país.
Neste cenário de forças globais, quem pode defender as lontras contra explorações agrícolas intensivas e mecanizadas, alimentadas por água de uma mega-barragem? Quem pode defender o montado contra a expansão muito mais rentável dos eucaliptais? Eu sozinho não posso, por mais forte que seja a trave que consiga arranjar.
Nenhum de nós, isolado, pode fazer a diferença. Mas forças globais combatem-se a nível global. E a Europa, com todos os seus defeitos, ainda é uma fonte de esperança, ainda tem em si as raízes da liberdade e da democracia, da representatividade e da transparência. Estou no LIVRE porque acredito na necessidade de uma Europa verdadeiramente democrática para reverter a atual corrida para o precipício ecológico. Estou no LIVRE porque acredito que ele poderá ser o ponto de apoio para fazer a diferença em Portugal.
Ponta Delgada, 10 de maio de 2014
José Manuel N. Azevedo, candidato do LIVRE
[1] Estes e outro factos em Ecossistemas e Bem-Estar Humano: Avaliação para Portugal do Millennium Ecosystem Assessment